Título: Conquistas e desafios
Autor: Goldfajn, Ilan
Fonte: O Globo, 06/02/2007, Opinião, p. 7

Enquanto se debate no Brasil o Pacote de Aceleração de Crescimento (PAC), o resto do mundo avança a passos largos. O dado de crescimento americano de 3,5% no último trimestre mostra que o ciclo atual está indo mais longe do que se esperava, a despeito de percalços no caminho, como a queda recente no mercado imobiliário. Há vários anos que a economia mundial vem crescendo ininterruptamente, um fenômeno que, se continuar, vai desencadear diversos estudos acadêmicos.

As conseqüências são relevantes. O crescimento robusto mundial, principalmente na exuberante China e na renascente Índia, está tirando milhões de pessoas da pobreza. Hoje, o bem-estar de uma sociedade, se medido pela sua renda por pessoa, pode se multiplicar em mais de cem vezes no prazo de uma vida somente (crescendo 7%, por 70 anos). Algo inédito na história.

Não há dúvida de que o padrão de crescimento atual nos EUA e na Ásia repercute no resto do planeta. O excesso de poupança na Ásia segue para os EUA em busca de ativos rentáveis e seguros, mas não fica por aí ¿ espalha-se para todos os cantos, gerando crédito abundante e barato para todos (em economês: farta liquidez mundial).

Numa conferência recente sobre desenvolvimento da qual participei na China, Larry Summers, ex-secretário do Tesouro americano e um dos melhores economistas da sua geração, ressaltava a importância desta fase mundial e delineava os novos desafios: 1. novo padrão de fluxo de capitais: países pobres (China, Índia, Rússia e até Brasil) têm financiado os países ricos (EUA) através de acúmulo de reservas internacionais. Esse padrão tem que se reverter em algum momento. O desafio é essa reversão ocorrer sem solavancos; 2. comércio de bens: a maioria dos países depende direta e indiretamente das exportações para os EUA que, pelo seu déficit, acumula uma dívida crescente. Em algum momento, essa trajetória será interrompida, com conseqüências para o padrão de comércio hoje vigente: EUA exportará liquidamente mais, e o resto do mundo menos. Como será essa transição? E, finalmente, 3. poder político: mudanças econômicas das magnitudes que estão ocorrendo hoje no mundo (ex.: PIB da China ficando maior que o dos países do G7) costumam levar a rebalanceamentos no poder político internacional. Novamente, o desafio é essa mudança ocorrer sem rupturas e solavancos (guerras?).

Enquanto isso, na América Latina, períodos de bonança mundiais são também períodos extravagantes. A situação mundial permite o ressurgimento de espécies que julgávamos extintas, como o populismo à la Chávez, que vai mais além da retórica antiamericana, pois nacionaliza empresas e cerceia liberdades (neste caso, os ganhos com o aumento no preço do petróleo foram fundamentais). No Equador, por exemplo, declara-se moratória da dívida, mesmo sem precisar. Na Argentina, taxam-se as exportações e se expropriam as empresas privadas. Nesses países, o ímpeto de gastar e estimular a demanda é tanto que mesmo nesse mundo de preços baixos e sob controle (em conseqüência da incorporação de mão-de-obra barata na China e Índia), a inflação chega a dois dígitos (10-20%), o que equivale hoje à hiperinflação dos anos 80. Para combater essa inflação (ou os seus sinais para a população), congelam os preços e, quando não funciona, demitem funcionários graduados dos institutos de estatística (tipo ¿IBGE¿), como feito na semana passada na Argentina.

Em Davos, o governo brasileiro fez um discurso bem recebido, mas logo surpreendeu defendendo, fora do script, as atitudes de Chávez, o que anulou o efeito inicial. Não acredito que o crescimento desses países da América Latina seja sustentável. Quando a maré mundial mudar, terão que enfrentar um longo período de desinflação custosa (quanto tempo levou o Brasil a reduzir uma inflação alta para os níveis atuais?).

O Brasil não embarca em nenhuma direção com força. Não adota as reformas que o fariam aproveitar o período mundial para mudar de patamar de renda e desenvolvimento e, por outro lado, felizmente, não cede ao populismo da mesma forma que os vizinhos. Fica, portanto, à deriva, seguindo a maré mundial, sem motor próprio. Produzindo planos, como o PAC que, se não são a solução, também não prejudicam muito. Permitem ganhar tempo. Resta saber para quê.

ILAN GOLDFAJN é professor da PUC. E-mail: igoldfajn@cianoinvest.com.br.