Título: Contradição à brasileira
Autor: Sardenberg, Carlos Alberto
Fonte: O Globo, 08/02/2007, Opinião, p. 7

CARLOS ALBERTO SARDENBERG

Oproblema do Brasil está na seguinte contradição: o crescimento depende de uma agenda liberal capitalista, que a cultura política dominante considera inaceitável. Tão inaceitável que o Partido da Frente Liberal, o único até aqui a assumir o nome, está pensando em mudar para Partido Democrático, que, aliás, nos Estados Unidos, está à esquerda.

Em tudo que acontece no país, aquela contradição aparece. Disse o presidente Lula que o Brasil não pode ter medo do crescimento e do aumento da demanda. Mas, como não ter medo diante do que se passa com os aeroportos?

O que houve foi simplesmente um forte aumento da demanda nos últimos anos, especialmente depois da entrada das novas companhias, a Gol à frente. Caíram os preços, cresceu o número de passageiros, multiplicaram-se as rotas, e o que aconteceu? A infra-estrutura aeroportuária, totalmente estatal, não deu conta.

E não vai dar. O PAC prevê investimentos de R$3 bilhões em 20 aeroportos. Mixaria. Estudo recente do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) calcula que só Congonhas e Guarulhos precisariam de R$7 bilhões para atender à demanda crescente. O governo não tem esse dinheiro.

Logo, qualquer empresa que esteja no ramo do transporte aéreo, ou que dependa dele, vai pensar duas vezes antes de iniciar novos investimentos.

Qual a saída?

Está na cara: um imenso programa de privatização. É possível conceder à iniciativa privada não apenas aeroportos atuais, como a construção e gestão de novos. Está sobrando dinheiro no mundo, com investidores à procura de bons negócios. Há empreiteiras, inclusive brasileiras, com experiência comprovada na construção e operação de aeroportos. E há aeroportos administrados por empresas privadas funcionando bem em vários países.

Qual o problema, portanto?

Se as companhias aéreas e os passageiros não pagassem taxas no Brasil, se o governo oferecesse a infra-estrutura de graça, ainda se teria um argumento. Mas não é assim. Companhias e passageiros pagam taxas, e muito caras. Capaz até de caírem com uma boa administração privada.

Outro (falso) argumento contra a privatização diz o seguinte: há aeroportos que são ou podem ser rentáveis e outros, pelo interior afora, que nunca o serão. E aí vem o que se imagina ser um xeque-mate: o governo vai entregar o filé para a iniciativa privada e ficar com o osso?

Falsa questão, porque o governo hoje não tem os recursos necessários nem para o filé nem para o osso. Logo, é negócio vender o filé e, assim, fazer o dinheiro para, quem sabe, transformar os ossos em coxão duro.

Também se pode fazer venda casada: o comprador leva um filé com osso. Algo assim: quem ganhar a licitação de Congonhas ou de um novo aeroporto em São Paulo, os mais rentáveis, leva de contrapeso um campo de pouso num lugar qualquer.

Só não pode fazer como, no fundo, quer o pessoal do governo Lula: entregar a concessão, mas com tais regras que a concessionária não possa ter lucros. Em outubro de 2003, o processo de concessão de rodovias federais foi suspenso porque o governo queria baixar o valor dos pedágios. Três anos depois ¿ três anos! ¿, o Ministério dos Transportes entregou o novo modelo para o gabinete do presidente Lula.

Foi devolvido. Acharam que as empreiteiras iam ganhar muito dinheiro, coisa que, como se sabe por aqui, é pecado mortal.

Assim, as estradas estatais continuam tão precárias quanto os aeroportos. Foi a mesma história: o país cresceu, pouco mas cresceu, as exportações, que demandam transportes, decolaram, e a infra-estrutura não deu conta.

Aí vem o PAC prometendo que agora vai, que o governo, finalmente, fará os investimentos necessários. Como confiar nisso, se não conseguiram nem recapear estradas nem tirar a borracha da pista principal de Congonhas?

O PAC também se propõe a ¿orientar¿ os investimentos privados acessórios ao programa governamental. De novo, como acreditar nisso, se o governo não consegue nem orientar seu próprio pessoal para destravar licenças ambientais ou redigir um simples edital de licitação?

O governo Lula se orgulha de ter ampliado os programas de distribuição de renda e considera isso sua missão prioritária. Não é ideal. Educação deveria ser a prioridade máxima. É a boa escola que tira as pessoas da pobreza.

Mas tudo bem. Entregar dinheiro aos pobres é melhor que muitos outros gastos. O governo poderia se concentrar nisso e conceder a infra-estrutura à iniciativa privada. Se bem que ¿ desconfio ¿ um bom banco privado seria mais eficiente na distribuição e fiscalização dos cartões do Bolsa Família.

Reparem, entretanto, não tem qualquer partido ou força política relevante propondo a agenda de privatizações. Ficam disputando o cobertor curto do PAC.

CARLOS ALBERTO SARDENBERG é jornalista. sardenberg@cbn.com.br