Título: Kirchner agrediu a democracia
Autor: Vianna, Sergio Besserman
Fonte: O Globo, 08/02/2007, Opinião, p. 7

SERGIO BESSERMAN VIANNA

Os funcionários do Indec (Instituto Nacional de Estatística e Censos) da Argentina, equivalente ao nosso IBGE, publicaram esses dias carta aberta à população acusando o presidente Néstor Kirchner de manipular o cálculo da taxa de inflação, realizando a ¿primeira intervenção de fato sobre um indicador público na história do Indec¿.

O governo de Kirchner demitiu Graciela Bevacqua, a funcionária que respondia pelo Índice de Preços ao Consumidor dentro do Indec e interveio no órgão, impondo novas diretrizes. Submetido a críticas da imprensa pelo caráter antidemocrático do ato, o presidente argentino reafirmou a arbitrariedade: "Se terminó eso del Estado que aisla, que hace lo que quiere. Acá hay um projecto nacional que hay que levar adelante..."

A controvérsia técnica sobre metodologia de apuração do movimento dos preços ou sobre a atual inflação no país (muito alta, de qualquer forma) é irrelevante frente à imensa agressão à liberdade e à democracia na Argentina que este ato significa.

Em toda a América Latina líderes políticos com discursos e programas vazios de conteúdo aproveitam o bom momento da economia mundial para se fortalecer politicamente com medidas populistas e promovem seguidas agressões à liberdade de imprensa, à institucionalidade democrática e aos valores republicanos.

A vitória contra a pobreza, a desigualdade e a acumulação ecologicamente destrutiva na América Latina será obra da população consciente e organizada ou não ocorrerá. A falta de liberdade e a fragilização da democracia política só servem aos poderosos e às oligarquias.

É espantoso como líderes políticos com um discurso e práticas que ecoam vagamente idéias da esquerda que existia há mais de meio século obtêm com isso salvo-conduto para praticar o maior retrocesso na história da democracia latino-americana desde a época das ditaduras militares.

Curiosamente, ao agredirem órgãos de Estado cuja essência inclui alguma autonomia frente aos governos do momento, esses dirigentes ficam assemelhados aos ultradireitistas adeptos do Estado mínimo.

Vale lembrar que quando o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Tony Blair, tomou posse, comprometeu-se com uma plataforma progressista de oito reformas constitucionais de enorme importância, como a criação do Parlamento escocês, a eleição direta para o cargo de prefeito de Londres e a reforma da Casa dos Lordes.

O primeiro ponto desse programa de gestão era ¿Liberdade de informação e um Instituto Nacional de Estatística independente¿. O instituto britânico havia sido agredido através da negligência na gestão da senhora Margaret Thatcher.

A autonomia e a credibilidade do Instituto Oficial ( público) de Estatísticas é um excelente termômetro da democracia em qualquer sociedade contemporânea. O ato antidemocrático do presidente Kirchner mostra que a Argentina está com febre.

Que seja passageira.

SERGIO BESSERMAN VIANNA foi presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas e é presidente do Instituto Pereira Passos, do Rio.