Título: E quem vai nos defender?
Autor: Damous, Wadih
Fonte: O Globo, 10/02/2007, Opinião, p. 7

Um dos paradigmas do Estado moderno é o ¿monopólio legítimo da força¿, que assegurou conquistas democráticas e do Estado de direito. Sem ele, todos permaneceriam reféns do medo, sob a ameaça sempre presente da ¿morte violenta¿ ¿ o fantasma da barbárie que assola a obra hobbesiana.

Mas esse fantasma assola, em repetidas ondas, a história nacional. E suas vítimas preferenciais são moradores de favelas e de periferias das cidades. Não bastasse serem alvos do banditismo comum, eles são, também, freqüentemente ameaçados por pistoleiros, grupos de extermínio ou ¿polícias mineiras¿, que se outorgaram a tarefa de ¿limpar¿ a sociedade dos ¿elementos indesejáveis¿.

A atuação desses grupos aparece sempre como ¿longe de nós¿. E muitos na classe média e nas parcelas mais ricas da sociedade desejam que os males que tais grupos dizem combater sejam mesmo, a qualquer custo, extirpados. De preferência, longe de nossos olhos e de nossas consciências. Para que ocorra tal ¿limpeza¿, legitima-se um ¿estado de exceção¿, onde princípios de justiça e eqüidade jurídica são suspensos e regras e condutas públicas que todos querem ver cumpridas nos bairros nobres são desrespeitadas.

As autodenominadas ¿milícias¿ (que nada mais são do que as antigas ¿polícias mineiras¿) ocupam, hoje, parte crescente do Rio ¿ em particular na Baixada de Jacarepaguá e na Ilha do Governador. Aliás, é impróprio chamá-las de milícias, porque não estamos diante da auto-organização de moradores, mas, sim, de bandos privados, muitas vezes estranhos a seus locais de atuação, formados por policiais, ex-policiais e alcagüetes.

As ¿milícias¿ se apresentam como reação à violência de integrantes do comércio varejista do tráfico de drogas. Elas cresceram nos últimos anos à sombra do poder municipal, com o apoio ou a complacência de suas mais altas autoridades (mesmo as que sempre gostaram de pregar ¿tolerância zero¿), como no caso de Rio das Pedras. E, também, na esteira de uma relação promíscua com parte do corpo de (in)segurança pública.

A cobrança de taxas de proteção aos moradores e ao comércio local, no melhor estilo da Máfia; o sobre-preço na compra de produtos como botijões de gás; a distribuição do ¿gatonet¿; a cobrança de impostos do transporte alternativo; e, ainda, a tutela do comportamento privado e social das pessoas são elementos presentes em sua atuação.

É muito grave a tentativa de conferir legitimidade a esses grupos, o que tem sido feito por setores da ¿sociedade civil¿ e do poder público. Em nome da ¿manutenção da ordem¿, ignoram-se princípios e garantias constitucionais para um determinado segmento social.

Serão as ¿milícias¿ uma opção aceitável ao poder dos traficantes? Ou não passam de outra forma de controle predatório? Será a ocupação das comunidades por elas alguma solução, ou só demonstra a incompetência do Estado e sua incapacidade de oferecer tratamento republicano a todos? As ¿milícias¿ abandonarão as comunidades após sua ¿pacificação¿ ou permanecerão auferindo os lucros que suas atividades proporcionam? No futuro não surgirá competição entre diferentes ¿milícias¿, na disputa desses lucros? E, ainda, não será inevitável que uma atividade rentável, à margem da lei, descambe para a violência fora de qualquer controle estatal?

Há quem considere irrelevantes os questionamentos acima, afirmando que muitas comunidades preferem as ¿milícias¿ ao jugo do tráfico. Mas tal argumento não significa o reconhecimento da falência e uma rendição do poder público, que estaria abdicando de uma tarefa primordial?

Em nome de uma duvidosa eficácia no enfrentamento dos descalabros da segurança pública não é possível suspender garantias universais à vida e à segurança de todos. Ou, então, decretaremos a era ¿maxineoliberal¿, em que até mesmo o monopólio da força será privatizado.

Neste caso, resta uma questão: no futuro, quem há de nos defender daqueles que, hoje, se propõem a proteger, à margem da lei, as comunidades pobres?

WADIH DAMOUS é presidente da OAB-RJ .

N. da R.: Zuenir Ventura volta a escrever neste espaço nos próximos dias.