Título: A força eleitoral das milícias
Autor: Schmidt, Selma
Fonte: O Globo, 11/02/2007, Rio, p. 19

Em favelas dominadas por grupos, agentes de segurança ficaram entre os mais votados

Elenilce Bottari e Sérgio Ramalho

Opoder de fogo das milícias no Rio vai além da capacidade de expulsar traficantes e controlar favelas. Levantamento feito pelo GLOBO em 35 das 92 áreas dominadas hoje por esses grupos paramilitares revela a enorme influência política que eles exercem sobre os moradores: 80% dessas comunidades tiveram pelo menos um policial, bombeiro ou militar reformado entre seus candidatos mais votados nas últimas eleições. Um novo fenômeno eleitoral que fica ainda mais explícito com os resultados do pleito: de nove candidatos da área de segurança pública que fizeram campanha para deputado nessas áreas, cinco conseguiram se eleger.

Paralelamente, também foi no ano passado que as milícias se multiplicaram na cidade, saltando de 42, em abril de 2005, para os números atuais. Situadas quase em sua totalidade em bairros da Zona Oeste e, em alguns casos, na Zona Norte, as 35 comunidades ficam em zonas eleitorais que abrangem cerca de 850 mil eleitores. O número corresponde a 18% de todo o eleitorado carioca.

Autoridades como o ex-secretário de Segurança Pública Marcelo Itagiba; o delegado Álvaro Lins, ex-chefe de Polícia Civil; e o deputado estadual Coronel Jairo, ex-presidente da Comissão Permanente de Segurança Pública da Alerj e primeiro-vice-presidente da nova Mesa Diretora da Casa, foram alguns dos policiais que tiveram votações expressivas nos territórios ocupados por milícias.

Ex-secretário foi à primeira área dominada por milícia

Eleito deputado federal com 70.057 mil votos, Itagiba (PMDB) teve seu melhor desempenho na 179ª Zona Eleitoral (ZE), região que abrange Rio das Pedras, Cidade de Deus, Gardênia Azul, Pechincha e Anil. Dos 4.085 votos que o ex-secretário obteve nessa região, 3.462 foram nas seções de Rio das Pedras, a mais antiga comunidade dominada por milícia no Rio.

Para se ter uma idéia do poder de fogo desse apoio, em Rio das Pedras, o número de votos de Itagiba foi 19 vezes maior do que os recebidos na Cidade de Deus (175), também em Jacarepaguá, comunidade dominada pelo tráfico.

Além de fazer corpo-a-corpo em Rio das Pedras, onde inaugurou, pouco antes do processo eleitoral, um posto de policiamento comunitário, Itagiba recebeu apoio do vereador Nadinho, líder na região, e do inspetor de polícia Felix dos Santos Tostes, citado em investigações como chefe do grupo paramilitar que domina a área. O policial estava lotado, até o último dia 30, no gabinete da Chefia de Polícia, quando foi afastado para responder sobre seu suposto envolvimento com milícias.

Inspetor também tentou ser eleito, para a Câmara

Eleito deputado estadual com 108.652 votos, Álvaro Lins (PMDB) também teve sua maior votação em área de milícia. Ele recebeu 2.176 votos na 180ª ZE ¿ 1.130 na região do Tanque ¿ sendo o segundo mais votado no Morro do Jordão, área dominada pelos grupos paramilitares. Com uma votação mais pulverizada, Lins esteve entre os quatro candidatos mais votados a deputado estadual em pelo menos dez comunidades controladas por milicianos.

Principal cabo eleitoral de Lins na região, o inspetor Fábio de Menezes Leão, o Fabinho, planejava seguir os passos do ex-chefe, usando a influência no curral eleitoral para conquistar uma cadeira na Câmara dos Vereadores. Preso em Bangu I, Fabinho aparece em interceptações de conversas telefônicas comemorando a votação do ex-chefe e traçando planos para sua candidatura a vereador. Um dos integrantes do grupo dos ¿inhos¿ ¿ referência aos apelidos de inspetores ligados a Lins ¿ Fabinho responde a processo por envolvimento com a máfia dos caça-níqueis, lavagem de dinheiro, contrabando e loteamento de delegacias.

Conforme mostraram investigações da Polícia Federal, o inspetor também tinha ligação com integrantes das milícias que dominam comunidades em Jacarepaguá. Com passe livre nessas áreas, Fabinho lançou-se candidato a vereador em 2004, conseguindo quase cinco mil votos na região. O inspetor, no entanto, não se elegeu.

Os grampos da PF revelam que os 108 mil votos conquistados por Lins revitalizaram os planos de Fabinho para conquistar uma vaga na Câmara. Numa das gravações, ele fala sobre a retomada de seu projeto político com o inspetor Mário Franklin Leite Mustrange de Carvalho, o Marinho. Ex-assessor de gabinete de Lins, o policial teve a prisão pedida pela PF, mas negada pela Justiça.

A interceptação, de 13 de novembro de 2006, mostra Fabinho e Marinho fazendo planos para ampliar a representação política do grupo. Para isso, no entanto, os dois policiais falam da importância de conseguir indicar os delegados da 32ª DP (Taquara) e da 41ª DP (Tanque), ambas em Jacarepaguá.

¿ Essas duas áreas, prioritariamente, são importantes para o nosso projeto futuro ¿ diz Marinho, referindo-se à campanha para eleger um vereador. E conclui: ¿ Eu falei com ele (Álvaro Lins, segundo a PF) que teriam que ser essas duas áreas, prioritariamente, para o nosso projeto futuro.

Satisfeito com a proposta, Fabinho responde:

¿ Pô! Show de bola. Aí fecharia. A gente conseguiria até voltar aos planos de emplacar a vereança. A gente fazia o vereador. Aí já volta a nossa idéia de conseguir fazer o vereador. Marinho, pelo jeito, então, essa aí foi a melhor notícia nos últimos... Um mês de dez dias, né? Porque a melhor foi a eleição, foi a melhor com 108 mil votos.

Ex-presidente da Comissão de Segurança Pública da Alerj, Coronel Jairo foi campeão de votos na 231ª ZE, que abrange o Morro de São Bento e o Conjunto Cardeal Dom Jayme Câmara, comunidades dominadas por milícias. Ele foi o mais votado, com 4.675 votos (16,5% dos votos válidos).

Fenômeno eleitoral foi o inspetor de Polícia Civil Natalino José Guimarães, de 50 anos, conhecido em Campo Grande como Batman ¿ personagem criado por Bob Kane em 1939, justiceiro de Gotham City. Ele foi o quarto candidato mais votado do PFL na capital. Dos 49.405 votos que lhe garantiram uma vaga na Alerj, mais de 30 mil foram conquistados em regiões dominadas por milícias. Na 245ª ZE, que abrange parte dos bairros de Campo Grande, Inhoaíba e Augusto Vasconcelos, o inspetor obteve 6.988 votos, 15,60% da preferência do eleitorado da região.

Mas, nas seções do Ciep Darcy Ribeiro, que engloba a comunidade de Vila Ieda, o desempenho de Batman foi ainda melhor: dos 2.792 votos válidos da região, ele conquistou 831, ou seja, 29,76% da preferência do eleitorado, numa disputa que contou com 114 candidatos. Para a campanha, contou com o apoio do irmão, o também policial civil e vereador Jerônimo José Guimarães, o Jerominho, eleito em 2004 com votos nas mesmas áreas.

Um dos preferidos do eleitorado na Zona Oeste do Rio, o policial civil licenciado e ex-vereador Jorge Babu foi eleito deputado estadual pelo PT com 32.563 votos. Do total, 20.976 foram conquistados em cinco ZEs da Zona Oeste. Ele foi o preferido nas escolas Japão, Chico Mendes e Rosa Maria Alves de Oliveira, que engloba os Conjuntos João XXIII e Guandu, onde conquistou cerca de 838 votos, ficando com 12% do eleitorado. Babu também ficou entre os mais votados nos conjuntos São Fernando e Alvorada.

Procurador diz que milícias são fenômeno eleitoral

Outros candidatos não eleitos foram fenômenos eleitorais em suas regiões. O militar reformado Epaminondas de Queiroz Medeiros Junior, ou Capitão Queiroz, do PDT, foi o líder de votos em Rio das Pedras. Ele conquistou, na 179ª ZE, 6.059 dos 12.257 votos que obteve em todo o estado. Embora não eleito, foi o 13º mais votado entre os 86 candidatos lançados pelo PDT.

O bombeiro Cristiano Girão também foi recordista de votos em área de milícia, embora não tenha sido eleito. Foi o campeão de Gardênia Azul e conquistou 3.916 votos na 179ª ZE.

Denúncias encaminhadas à fiscalização do Tribunal Regional Eleitoral durante a campanha eleitoral revelaram que muitos candidatos tiveram sua entrada proibida em áreas dominadas por milícias ou por traficantes. Segundo o procurador regional eleitoral Rogério Nascimento, as milícias constituem hoje um fenômeno eleitoral.

¿ Assim como no caso dos evangélicos e das cestas básicas, agora também há o fenômeno das milícias. Temos que examinar com profundidade a questão, para saber se, dentro desse fenômeno, está embutido algum crime eleitoral.