Título: Doações sob suspeita
Autor: Beck, Martha
Fonte: O Globo, 12/02/2007, O País, p. 3

Receita encontra indícios de irregularidades em contribuições nas eleições de 2006.

Martha Beck

Uma força-tarefa em curso na Receita Federal levantou a suspeita de que a origem de boa parte dos recursos para doações à campanha eleitoral de 2006 é nebulosa. Antecipando um trabalho que começará efetivamente em março, auditores fiscais cruzaram as informações sobre contribuições de cidadãos e empresas a candidatos e comitês com as declarações de renda de 2005. A análise preliminar, a que o GLOBO teve acesso com exclusividade, apresenta resultado alarmante. De um grupo de 24 documentos investigados, dez registraram algum tipo de problema, indicando a existência de fraude fiscal ou descumprimento da lei eleitoral. Caso essa proporção se mantenha, mais de 40% das doações feitas ano passado não obedeceram aos padrões exigidos pela legislação.

A partir de março, a Receita Federal começará a fazer o cruzamento das doações de campanha em 2006 com as declarações de renda do ano passado ¿ quando as contribuições e seu destinatário deverão ser informados na prestação de contas ao Leão ¿ para saber se os contribuintes cometeram algum tipo de irregularidade eleitoral ou tributária.

As doações feitas nas campanhas de 2006 para presidente, governadores, senadores e deputados federais e estaduais somaram pelo menos R$1,324 bilhão. Já o número de doadores chegou a 240.712, entre pessoas físicas e jurídicas. Segundo técnicos da Receita, embora o grupo analisado de forma experimental seja pequeno dentro do universo total, o potencial para que existam irregularidades dessa magnitude é muito alto.

Entre os casos problemáticos que foram encontrados pela Receita, estão os que cruzam a renda declarada e o valor da contribuição eleitoral. Uma pessoa física declarou ter auferido rendimentos de apenas R$13,5 mil em 2005 ¿ o equivalente a um salário mensal de apenas R$1.125. No entanto, em 2006, este brasileiro teve condições de arcar com uma doação de R$50 mil à corrida eleitoral.

Empresa sem renda doou R$ 360 mil

A incompatibilidade entre as informações tributária e eleitoral também ficou evidente no caso de várias firmas. Uma empresa, por exemplo, declarou não ter tido renda bruta em 2005. Ou seja, relatou ao Fisco que continuava juridicamente constituída, mas economicamente inativa. Apesar de não ter movimentado um único centavo no ano anterior, em 2006 essa mesma firma fez uma doação eleitoral de R$360 mil.

Segundo técnicos do Fisco, esses dados não comprovam que os contribuintes praticaram alguma irregularidade. Suas situações econômicas podem ter se alterado entre um ano e outro. Porém, a diferença entre a renda e a doação é muito grande, o que alimenta as suspeitas de que haja problemas por trás de ambas. Por isso, esses contribuintes podem ser chamados a dar explicações sobre a origem dos recursos.

Também houve três casos de pessoas físicas que doaram em 2006 entre 30% e 35% de sua renda bruta em 2005. Nesse caso, o problema é que, pela lei eleitoral, esses contribuintes só podem doar até 10% da renda bruta auferida no ano anterior à eleição. No caso das empresas, a doação só pode ser de até 2% do faturamento bruto no ano que antecede a eleição.

O cruzamento de informações tributárias e de campanha está sendo feito graças a um convênio firmado entre a Receita Federal e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em janeiro do ano passado. A idéia é ter um controle maior sobre o fluxo de recursos para as campanhas e detectar irregularidades não apenas de financiamento, mas também tributárias, como sonegação fiscal.

O aperto tem como pano de fundo os escândalos políticos ocorridos ao longo de 2005 envolvendo o financiamento de campanhas com caixa dois, como o episódio do mensalão. O caso resultou em comissões parlamentares de inquérito (CPIs), cassações de parlamentares e numa verdadeira guerra entre governo e oposição no Congresso.

¿ A troca de informações entre a Receita e o TSE, que só se tornou possível com o convênio firmado em 2006, será um elemento importante de combate a vários tipos de crimes ¿ disse um graduado técnico do Fisco.

Ele lembra que a Receita também vai observar se houve alguma irregularidade em serviços utilizados pelos candidatos. A equipe técnica vai investigar, por exemplo, se foi contratada alguma empresa cujo CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) foi cancelado ou se houve fornecimento de mercadorias por pessoas jurídicas que estejam inaptas ou que não existam no cadastro do Fisco.

Também ficará mais difícil omitir informações sobre as doações realizadas. Pela primeira vez, pessoas físicas e jurídicas terão que incluir em suas declarações do Imposto de Renda 2007 (ano-base 2006) quanto doaram para a campanha eleitoral do ano passado. Também será preciso informar o nome do candidato, além de seu partido político ou comitê financeiro. Haverá um campo nas declarações para que os dados sejam repassados em detalhes.

É com base nesses dados que o cruzamento mais intenso entre a renda e as doações será feito. A declaração das pessoas físicas começará a ser entregue no dia 1º de março, e o prazo vai até 30 de abril. Já as empresas terão até o fim de junho para acertar as contas com o Leão.

Do total de mais de 240 mil doações, 181.299 foram de pessoas físicas. O restante foi de empresas. O montante de R$1,3 bilhão também foi bastante elevado. Se for levado em consideração o que foi arrecadado, a campanha eleitoral teria custado R$10,32 por eleitor. As eleições mais caras ocorreram nos maiores estados. São Paulo, por exemplo, levou R$240 milhões, enquanto Minas Gerais recebeu R$120 milhões, e o Rio, R$84,6 milhões.