Título: Uma vitória do sim ao aborto
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Fonte: O Globo, 12/02/2007, O Mundo, p. 19

Abstenção anula referendo em Portugal, mas resultado da votação faz governo levar projeto ao Parlamento.

LISBOA

Ogoverno de Portugal vai usar sua maioria no Parlamento para tentar aprovar o projeto de lei que legaliza o aborto no país. O anúncio foi feito após o resultado do referendo de ontem sobre o tema, em que 59% dos eleitores votaram ¿sim¿ pelo fim da lei que proíbe a prática. O alto índice de abstenção, 57%, anulou a consulta popular mas o primeiro-ministro de Portugal, José Sócrates, minimizou o fato dizendo que ¿a vontade do povo será respeitada no Parlamento¿. Esse é o segundo referendo sobre o tema no país em menos de dez anos. No primeiro, em 1998, além da invalidação por causa da abstenção, o ¿sim¿ foi derrotado por pouco mais de 1% dos votos.

¿ O povo falou de forma clara e sua vontade será respeitada. Com este resultado Portugal dá mais um passo firme na consolidação de uma sociedade mais aberta, tolerante e justa. A lei que agora temos que aprovar deve desde logo respeitar a decisão do referendo ¿ disse o primeiro-ministro, José Sócrates.

Um dos poucos países da UE a proibirem a prática

O projeto de lei sugerido pelo governo de centro-esquerda pretende conceder às mulheres o direito de interromper voluntariamente a gravidez durante as dez primeiras semanas de gestação. Na União Européia (UE), além de Portugal, somente Polônia, Irlanda e Malta proíbem o aborto. De acordo com as leis portuguesas, a interrupção da gravidez só é permitida em casos de estupro, má formação do feto ou risco de vida para as mães. Mesmo assim, só pode ser feita nas 12 primeiras semanas de gravidez. Em outros 23 países da UE o aborto é permitido, mas com restrições. As mulheres podem interromper a gravidez nas primeiras 24 semanas de gestação na Grã-Bretanha e durante as 12 primeiras semanas em Itália, França e Alemanha.

O governo alega que a proposta do referendo tem como objetivo mostrar que Portugal deseja adotar uma ¿legislação mais moderna, condizente com os demais países da UE.¿ Mas seus esforços para mudar a legislação encontraram uma forte oposição da Igreja Católica, que organizou uma grande campanha pelo ¿não¿, e de outros setores conservadores do país.

O anúncio do referendo, em novembro do ano passado, gerou a maior disputa entre partidários e contrários ao aborto da história do país. Na TV, ambos investiram em campanhas milionárias e polêmicas. Os favoráveis mostravam fotos de meninos e meninas de rua, alegando que o abandono é fruto de gravidez indesejada. Já os contrários apelavam para imagem de fetos e bebês mortos, dizendo que matar um feto é ¿um assassinato brutal de um inocente¿. Nas ruas, a disputa ficou mais intensa nas últimas semanas. Organizações de defesa dos direitos das mulheres fizeram campanhas nas ruas de Lisboa e do Porto pelo ¿sim¿, enquanto muitos católicos organizaram vigílias e novenas pelo ¿não¿ em centros religiosos, como a cidade de Fátima.

¿ Vamos rezar até que o ¿não¿ seja vitorioso. O Estado não pode compactuar com esse tipo de crime. O governo diz que precisamos ser mais modernos, mas não precisamos fazer isso às custas do sangue de inocentes ¿ disse a dona de casa Maria Eugênia Pontes, que foi a Fátima participar das orações pelo ¿não¿.

A Igreja Católica fez o que pôde para impedir a aprovação da lei no referendo. A campanha nas paróquias e principais cidades reuniu milhares de colaboradores. Até mesmo fora do país foram organizadas manifestações, em Paris, Roma e Madri.

O principal argumento dos partidários do ¿sim¿ é que as mulheres que cometem abortos clandestinos não têm garantia de condições de higiene e cuidados médicos, podendo ainda por cima ser processadas. Já os contrários alegam que a vida começa na concepção.

Para o líder da oposição, Luis Marques Mendes, presidente do Partido Social Democrata (PSD), o país está dividido e quem é contra o aborto ainda vai lutar por suas convicções:

¿ Considero a vitória do ¿sim¿ legítima. Essa vontade deve ser respeitada. Mas muitos que não votaram são partidários do ¿não¿ e o país está dividindo. Essas pessoas têm convicções muito sólidas e certamente vão lutar por elas.

A coordenadora da campanha do ¿não¿, Isilda Pegado, diz que vai lutar para que o governo não aprove o projeto no Parlamento.

¿ O governo não pode se basear numa minoria para dizer o que o povo realmente quer. Vamos continuar lutando contra este projeto e tenho muita esperança de que teremos êxito ¿ disse ela.