Título: Ação conseqüente
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 14/02/2007, O País, p. 4

O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, entrou no debate sobre a violência de maneira firme e criativa, dando novas dimensões para serem discutidas além do natural repúdio que um assassinato brutal como o do menino João Hélio provoca na sociedade. A proposta de que a legislAção penal seja adequada às necessidades de cada estado da federAção, apresentada em artigo publicado ontem aqui no GLOBO, faz todo o sentido. Assim como existem maneiras diversas de encarar a repressão à violência, de acordo com as características de cada país, e até mesmo de cada continente, dentro de um país com as características continentais do Brasil é natural que existam situações específicas a serem combatidas nas regiões metropolitanas do Rio e São Paulo que não se repetem no interior do país ou em outras regiões, que terão também as suas especificidades para serem atendidas pela legislAção.

Estaremos desse modo tratando da legislAção penal como um todo, e não apenas da questão que mais comove a sociedade no momento, que é a discussão sobre a antecipAção da maioridade penal. Também nesse aspecto o governador anunciou uma proposta que lida com a questão de maneira a contornar seus eventuais inconvenientes.

Em vez da simples antecipAção da idade da responsabilidade penal de 18 anos para 16 anos, como clama a maioria da sociedade diante da suposta participAção de um menor no crime atroz, o governo do estado proporá um projeto que dá ao juiz a capacidade de emancipar judicialmente um menor infrator que tenha constatado, por médicos, o pleno entendimento do ato grave que tenha cometido.

Uma outra proposta está sendo apreciada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado: a maioridade penal seria antecipada para 16 anos, mas o juiz teria condições de considerar penas mais brandas para os infratores entre 16 e 18 anos, nos casos de crimes que venham a ser considerados sem gravidade.

Antecipar a maioridade penal certamente não é a solução dos nossos problemas de violência, mas é uma das medidas que precisam ser tomadas dentro da necessidade de modernizar o combate ao crime. A velocidade da informAção no mundo moderno já não comporta mais a interpretAção de que adolescentes menores de 18 anos não têm noção do que estão fazendo ao participar de crimes, especialmente os brutais, como este último ocorrido no Rio, com uma criança sendo arrastada pelas ruas até morrer.

Há diferenças imensas entre os países no que toca à definição da idade limite para punição legal, e essa discrepância reflete não apenas maneiras distintas de sociedades democráticas agirem em defesa própria, como até mesmo a diferença de velocidade com que um adolescente se desenvolve física e mentalmente.

Com as novas tecnologias de comunicAção, e a cultura de massas espalhando pelo mundo os mesmos conceitos de comportamento, essa diferença está se reduzindo dramaticamente, dando acesso às mesmas informações a rapazes e moças de países desenvolvidos e emergentes.

As diferenças existem entre países europeus - na Bélgica a idade é 18 anos, na Holanda é de 12 anos - e entre comunidades mais próximas como no Reino Unido: na Escócia essa idade é de 8 anos, na Inglaterra, na Irlanda e no País de Gales é de 10 anos. Já nos países escandinavos há um consenso que fixa a idade em 15 anos. Mas temos no Brasil questões mais profundas dentro do mesmo tema.

Nos países escandinavos, um crime cometido por um menor de 15 anos é considerado um sintoma de problemas no desenvolvimento da criança, e os assistentes sociais agem para garantir que esse processo seja revertido, sendo até possível a internAção desse menor infrator em uma unidade especial de atendimento. Não se vêem nesses países desenvolvidos bandos de crianças abandonadas pelas ruas, e, diferentemente do que acontece aqui, o Estado tem a obrigAção de recolhê-las e ser responsável por elas, caso não tenham família.

A responsabilidade dos pais também é muito clara na maioria das legislações. Aqui no Brasil, menores infratores não são mais uma exceção, e nós não temos reformatórios que possam recuperar essas crianças, nem escolas, nem mercado de trabalho para garantir-lhes uma perspectiva de futuro. São verdadeiras hordas de adolescentes que entram para o crime, sem que a sociedade tenha condição de tentar recuperá-los para a vida, gerações seguidas praticamente perdidas.

É claro que a impunidade é um dos fatores que aumentam a participAção de menores na criminalidade e, mesmo nesse caso brutal ocorrido aqui no Rio de Janeiro, já surge a possibilidade de que o irmão menor tenha assumido a responsabilidade pelo crime para livrar o mais velho. Esse é um procedimento comum, e que vai continuar sendo usado pelos criminosos, que recrutarão rapazes e moças cada vez mais jovens ainda para acobertar os crimes. De qualquer maneira, reduzindo a maioridade estaremos reduzindo também a margem de manobra dos bandidos.

E, dando aos juízes uma capacidade mais ampliada de julgamento, poderemos criar pelo menos a ameaça de punição que iniba a Ação criminosa. Mas é preciso mais, é preciso investir num sistema prisional que, ao mesmo tempo em que impeça os bandidos presos de continuarem a agir, tenha pelo menos o objetivo de recuperá-los, e não se transforme em uma fábrica de criminosos.

Temos que cuidar do sistema educacional com seriedade, para dar uma perspectiva de futuro a essas crianças. Toda cautela é necessária, como pediu o presidente Lula aos líderes políticos ontem. Mas a prudência não pode ser confundida como leniência, e a impunidade não pode continuar a prevalecer no nosso sistema penal. E as palavras ocas não podem continuar dominando o discurso político. Se o que está ocorrendo no Rio é uma Ação terrorista, como classificou o próprio presidente Lula recentemente, a Ação governamental teria que ser conseqüente com essa visão.