Título: Avança a cultura da morte
Autor: Bolan, Valmor
Fonte: O Globo, 20/02/2007, Opinião, p. 7

No último dia 11, os portugueses aprovaram - através de um referendo proposto pelo governo atual - a descriminação do aborto no país considerado o mais católico da Europa. Houve um elevado índice de abstenção (mais da metade dos eleitores deixaram de comparecer às urnas), mas o fato é que especialmente a Igreja Católica sofreu uma dura derrota.

Vamos com isso assistindo a uma ampliação sem precedentes de iniciativas em todo o mundo para a imposição daquilo que o Papa João Paulo II chamou de "cultura da morte". O aborto, a eutanásia, a esterilização de mulheres, a permissividade moral e sexual, a prostituição, o homossexualismo, tudo isso vem minando as bases da família, gerando novos costumes que contrariam o direito natural.

"Como pano de fundo, existe uma crise profunda da cultura", afirmou João Paulo II na Encíclica "Evangelium vitae", que gera ceticismo sobre os próprios fundamentos do conhecimento e da ética e torna cada vez mais difícil compreender claramente o sentido do homem, dos seus direitos e dos seus deveres. A isto vêm se juntar as mais diversas dificuldades existenciais e interpessoais, agravadas pela realidade de uma sociedade complexa, onde freqüentemente as pessoas, os casais, as famílias, são deixadas sozinhas a braços com os seus problemas.

Não faltam situações de particular pobreza, angústia, exasperação, onde a luta pela sobrevivência, a dor nos limites do suportável, as violências sofridas, especialmente aquelas que investem as mulheres, tornam por vezes exigentes até ao heroísmo as opções de defesa e promoção da vida.

Tudo isto explica - pelo menos em parte - como possa o valor da vida sofrer hoje uma espécie de "eclipse", apesar de a consciência não cessar de o apontar como valor sagrado e intocável; e o comprova o próprio fenômeno de se procurar encobrir alguns crimes contra a vida nascente ou terminal com expressões de âmbito terapêutico, que desviam o olhar do fato de estar em jogo o direito à existência de uma pessoa humana concreta.

Quase todos os países europeus aprovaram legislações despenalizando o aborto e aceitando a prática da eutanásia. Tudo isso reforça a mentalidade atual de indiferença à vida, de descaso para com a pessoa humana, daí causando toda espécie de violências que afligem a todos nas diversas partes do mundo.

A "Evangelium vitae" chamou a atenção para o fenômeno de conjura contra a vida que vivemos na atualidade. Olhando as coisas deste ponto de vista, pode-se, em certo sentido, falar de uma guerra dos poderosos contra os débeis: a vida, que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é reputada inútil ou considerada como insuportável e, conseqüentemente, rejeitada sob múltiplas formas. Todo aquele que, pela sua enfermidade, sua deficiência ou, mais simplesmente ainda, pela sua própria presença, põe em causa o bem-estar ou os hábitos de vida daqueles que vivem mais avantajados, tende a ser visto como um inimigo do qual se defender ou um inimigo a eliminar. Desencadeia-se assim uma espécie de "conjura contra a vida".

No Brasil, é possível que brevemente reacenda o debate sobre a legalização do aborto, isso porque o PL 1135/91 foi adiado, na audiência pública de dezembro de 2005, e pode ser colocado novamente em pauta, ainda mais neste semestre em que receberemos a visita do Papa Bento XVI.

Usemos, com o mesmo empenho daqueles que pouco valorizam a vida, nossa generosidade para apoiar aquelas mulheres que se acham em imensas dificuldades diante de uma gravidez não-desejada.

VALMOR BOLAN é reitor da Universidade Guarulhos, em São Paulo, e vice-presidente do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras.