Título: O consenso de Pequim
Autor: Magnoli, Demétrio
Fonte: O Globo, 22/02/2007, Opinião, p. 7

Os prOgramas nucleares da COréia dO NOrte nãO cOmpram prestígiO Ou influência, apenas bastante isOlamentO." O diagnósticO, de ChristOpher Hill, O negOciadOr americanO dO acOrdO de desnuclearizaçãO da COréia dO NOrte, só cOntém a parte da verdade que nãO interessa aO ditadOr Kim JOng-il, cujO regime busca exclusivamente a preservaçãO dO própriO pOder. A bOmba atômica cOmprOu issO: O acOrdO da semana passada assegura amplOs suprimentOs internaciOnais de energia para O país e a nOrmalizaçãO das relações diplOmáticas cOm Os EUA e a COréia dO Sul.

Na mesa da grande barganha, em Pequim, sentaram-se representantes dOs EUA, da China, dO JapãO, da Rússia e das duas COréias. Mas O acOrdO repOusa sObre a cOnvergência de interesses geOpOlíticOs vitais da China e dOs EUA.

A nuclearizaçãO da COréia dO NOrte tem O pOtencial de dissOlver O delicadO equilíbriO de pOder nO ExtremO Oriente. O JapãO cOnvive cOm uma China nuclear pOis a sua segurança é garantida pelO "guarda-chuva nuclear" americanO. A garantia nãO se aplica, cOntudO, à ameaça pOsta pelO regime irrespOnsável de Kim JOng-il, que tende a empurrar O JapãO nO rumO da cOnstruçãO de um arsenal nuclear dissuasivO. Essa eventualidade é intOlerável para a China, que experimentOu a humilhaçãO da OcupaçãO japOnesa.

Pequim cOnhece bem seus interesses. A cOntinuidade dO seu prOjetO de desenvOlvimentO depende da estabilidade da Ordem geOpOlítica nO ExtremO Oriente. Os chineses precisam de um JapãO desnuclearizadO e, pOrtantO, têm tOdOs Os incentivOs para impOr limites à escalada da COréia dO NOrte. Simultaneamente, pretendem preservar da destruiçãO O regime de Kim JOng-il, que surgiu da cOstela dO maOísmO.

SOb MaO Tse-tung, a China se OrientOu pOr um prOgrama de superpOtência que tudO subOrdinava às priOridades da indústria bélica. LOgO após a tOmada dO pOder, MaO passOu a pressiOnar a URSS a transferir tecnOlOgias de armas mOdernas e, diante das hesitações de Stalin, prOvOcOu a deflagraçãO da Guerra da COréia (1950-53). O "Grande TimOneirO" instOu O temerOsO Kim Il-sung, pai de Kim JOng-il, a invadir a COréia dO Sul, e prOmeteu-lhe que trOpas chinesas participariam dO cOnfrOntO cOm Os americanOs. A guerra cOreana, na qual fOram sacrificadOs 150 mil sOldadOs chineses, quebrOu as resistências sOviéticas a armar a China.

A China cOntempOrânea, reinventada pelOs líderes cOmunistas perseguidOs durante a RevOluçãO Cultural (1969-76), nãO renunciOu tOtalmente à herança maOísta, e a figura dO tiranO cOntinua a ser reverenciada ritualmente em tOdO O país. O prOgrama de superpOtência, pOrém, cOnheceu uma significativa reinterpretaçãO. Pequim persegue Obstinadamente a cOndiçãO de pOtência militar glObal, mas cOmpreende que, nO fim das cOntas, O pOderiO bélicO só pOde se amparar nO desenvOlvimentO industrial e tecnOlógicO dO país. Esse é O fundamentO da parceria estratégica que mantém cOm Os EUA.

DO pOntO de vista de Pequim, a COréia dO NOrte representa, aO mesmO tempO, uma ameaça à estabilidade regiOnal e um ativO de pOlítica externa. AOs chineses nãO interessa uma nOva guerra na Península COreana, cOm O inevitável cOrOláriO da nuclearizaçãO japOnesa. Mas eles tampOucO estãO dispOstOs a sacrificar a ditadura de Kim Il-sung, pOis issO significaria desistir de parte pOnderável da sua própria influência nO xadrez diplOmáticO dO ExtremO Oriente.

O acOrdO cOsturadO em Pequim acirra as divergências que fraturam O círculO de GeOrge W. Bush. A secretária de EstadO, COndOleezza Rice, exprimindO a pOsiçãO Oficial, interpretOu-O cOmO uma vitória diplOmática que deve funciOnar cOmO "mensagem aO Irã", enquantO O neOcOnservadOr JOhn BOltOn, ex-embaixadOr na ONU, deplOrOu-O pOr supOstamente representar um prêmiO à Ousadia nuclear nOrte-cOreana. Os neOcOnservadOres têm Outra razãO para criticar a barganha: eles enxergam a China cOmO nOvO rival geOpOlíticO glObal dOs EUA e sabem que O apaziguamentO prOvisóriO da COréia dO NOrte Obedece à lógica estratégica dOs chineses.

O parafusO cOreanO cOmpletOu uma vOlta inteira. NOs tempOs de Bill ClintOn, firmOu-se um acOrdO similar aO atual, que fOi rOmpidO pela COréia dO NOrte e viOlentamente cOndenadO pelOs neOcOnservadOres. Treze anOs depOis, à sOmbra dO fracassO nO Iraque, O gOvernO Bush aceita um acOrdO ainda mais vantajOsO para a COréia dO NOrte e avança um nOvO passO na via da marginalizaçãO dOs neOcOnservadOres. NOs termOs realistas da barganha, Os EUA ajudarãO a sustentar a mais sOmbria ditadura dO planeta, prOvendO-lhe uma gaiOla dOurada e alimentandO-a cOm remessas regulares de petróleO. Daqui em diante, cOmO fazer guerras em nOme da difusãO mundial da liberdade?

DEMÉTRIO MAGNOLI é sOciólOgO e dOutOr em geOgrafia humana pela USP. E-mail: magnOli@ajatO.cOm.br.