Título: Real forte, inferno das ONGs
Autor: Rodrigues, Luciana
Fonte: O Globo, 22/02/2007, Economia, p. 21

Orçamento de organizações que dependem de ajuda externa cai e afeta projetos sociais

Luciana Rodrigues

Não são apenas os exportadores que sofrem com a queda do dólar. O Real valorizado, que faz a festa dos brasileiros em viagem no exterior, virou o inferno de ONGs e entidades sem fins lucrativos que dependem de ajuda externa para fechar o caixa. São projetos sociais financiados, em sua maioria, por agências européias, mas também americanas, japonesas e canadenses. Em dólar, euro ou iene, os recursos continuam os mesmos. Mas estão valendo bem menos em reais. A saída tem sido reduzir projetos, enxugar o quadro de pessoal ou aumentar a captação de recursos no Brasil.

A Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), ONG voltada para o fortalecimento da democracia e o desenvolvimento sustentável, acumula nos últimos três anos um déficit de mais de R$1 milhão. Em 2004, quando apresentou às agências financiadoras seu orçamento trienal para o período de 2005 a 2007, a Fase projetou uma taxa média do dólar de R$2,94. Desde então, as cotações da moeda americana no Brasil desabaram.

- Tivemos uma perda drástica de receitas. Estamos sobrevivendo graças ao nosso fundo de reserva. A Fase foi fundada em 1961 e tem uma relação de décadas com seus parceiros, por isso recebemos um apoio institucional significativo. As ONGs menores estão em situação muito mais delicada - afirma o diretor-executivo nacional da entidade, Jorge Eduardo Saavedra Durão.

Ele acrescenta que a ONG tomou medidas duras: substituiu o plano de saúde de sua equipe por outro mais barato, demitiu 12 funcionários no ano passado e não descarta novos cortes de pessoal este ano. Cerca de 90% das receitas da Fase vêm da cooperação internacional.

ActionAid: menos R$1,7 milhão

A britânica ActionAid, que atua mais como financiadora de outras ONGs, também enxugou seu quadro de pessoal no Brasil, não contratando funcionários para vagas abertas pela saída de antigos colaboradores. A ActionAid tem como filosofia destinar 70% de suas receitas a parceiros locais, nos 35 países onde atua. No Brasil, esses recursos sofreram um corte de 10% no ano passado e de 15% em 2005. No total, foi menos R$1,7 milhão repassado aos 17 parceiros permanentes e a outros projetos da ActionAid no país.

- Isso afetou profundamente nossos parceiros. Internamente, também tivemos de fazer ajustes. Houve contenção de despesas operacionais, redução de viagens. Nossas operações no Brasil foram dificultadas pela questão cambial - explica Jean Charles Catalan, coordenador Financeiro da ActionAid no Brasil.

A ONG refez suas contas para 2007 e usou como parâmetro a cotação de R$4 para a libra - ou seja, abaixo dos R$4,18 que a moeda britânica valia no fim do ano passado. Desde 2003, o Real já subiu 26% frente à libra. Para reduzir sua dependência da ajuda externa, o escritório da ActionAid no Brasil está tentando aumentar a captação doméstica, junto a brasileiros.

Prática usual em países ricos, principalmente na Europa, as doações individuais a ONGs não são comuns no Brasil. Mas o Ibase, fundado pelo sociólogo Betinho na década de 1980, tem hoje 1.200 doadores regulares. A estratégia de buscar mais recursos no Brasil surgiu de um cenário parecido com o atual: após a implantação do Real, em 1994, o dólar baixo levou a uma forte perda de receitas. Na época, a ajuda externa respondia por dois terços do orçamento do Ibase.

O baque dos primeiros anos do Real levou o Ibase a diversificar suas receitas e procurar financiamento no Brasil, inclusive de doadores individuais. Hoje, a ajuda internacional tem peso de 50% no orçamento. Ainda assim, a recente valorização do Real fez um estrago nas contas:

- No ano passado, pela primeira vez em oito anos, quase fechamos no vermelho. Começamos 2006 com um dólar médio de R$2,30 e, no fim do ano, estava a R$2,15. Isso representou uma perda de quase R$250 mil para nós - explica Cândido Grzybowski, diretor-geral do Ibase.

A ONG teve de cortar despesas, mudando o escopo de alguns projetos e diminuindo o volume de publicações e seminários. Mesma postura adotada pela Esplar, que atua no semi-árido cearense. Segundo Magnólia Said, presidente da Esplar, a ONG encolheu alguns projetos, reduzindo o número de municípios e domicílios atendidos.

"Estrago no terceiro setor é generalizado"

Em alguns casos, porém, diz Magnólia, a Esplar conseguiu negociar com parceiros internacionais aportes adicionais de recursos, para cobrir a diferença cambial. Foi o caso, por exemplo, da agência alemã EED, de igrejas evangélicas, que está negociando uma ajuda extra à Esplar este ano. Magnólia, que também é da diretoria da Associação Brasileira de ONGs (Abong, que tem 270 associadas), afirma que o estrago do câmbio "no terceiro setor é generalizado":

- A maioria das ONGs depende do financiamento da cooperação internacional. São recursos da Europa, do Japão, dos Estados Unidos.

No Comitê para Democratização da Informática (CDI), a compreensão do financiador foi fundamental para evitar o cancelamento de um projeto. A ONG fez uma parceria em 2005 com a Fundação Accenture, que previa, entre outros programas, a criação de um Banco de Conhecimento, para capacitar os coordenadores pedagógicos das escolas de informática. Mas o Banco do Conhecimento ficou ameaçado pela queda do dólar.

Mário Vieira, diretor de Operação do CDI, explica que o projeto fora orçado com o dólar a R$2,88. Mas no primeiro desembolso da Accenture, a cotação já estava em R$2,72. Na segunda parcela, recuara para R$2,20. E ainda falta a terceira prestação. Diante da escassez de recursos, pensou-se em cancelar o Banco do Conhecimento para se concentrar nos outros projetos financiados pela Accenture. Mas, na semana passada, a Accenture aprovou um novo aporte de recursos para cobrir a diferença cambial.

- Os projetos de ONGs normalmente são de longo prazo. A oscilação do câmbio exige uma gestão financeira muito rigorosa o que, para ONGs menores, pode ser complicado - afirma Vieira, acrescentando que, no caso do CDI, 40% do orçamento vêm de parceiros internacionais.