Título: Corrigindo uma distorção
Autor: Neto, Armando Monteiro
Fonte: O Globo, 27/02/2007, Opinião, p. 7

A democracia se exerce plenamente no equilíbrio e interdependência dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o que assegura que nenhuma das esferas de poder terá, isoladamente, domínio absoluto sobre a vida dos cidadãos, e haverão de agir apenas dentro das atribuições que a Constituição Federal lhes confere.

Não foi com outro espírito que a Câmara dos Deputados aprovou no último dia quinze a emenda nº 3 ao projeto de lei que criou a chamada "Super-Receita".

A emenda visa a corrigir uma situação anômala que deixava indefesos cidadãos corretos e empreendedores de várias áreas. Engenheiros, economistas, publicitários, contadores, jornalistas, profissionais liberais e outros, dentro do que determina a lei, abrem pequenas empresas para prestar serviços a outras empresas ou ao próprio serviço público, recolhendo, para tanto, todos os tributos previstos na legislação. A autoridade administrativa, certamente com a boa intenção de aumentar a arrecadação, ao examinar as empresas contratantes, trata as prestadoras de serviços como se fossem pessoas físicas, desconsiderando, arbitrariamente, o fato de que elas se constituem, legalmente, como pessoas jurídicas. O resultado é que seus sócios são considerados empregados das empresas contratantes e a remuneração deles sofre tributação mais elevada do que a determinada em lei.

Em linguagem simplificada, a emenda nº 3 determinou que os agentes da Receita Federal somente venham a desconsiderar a personalidade jurídica com fundamento em decisão da Justiça. Somente a Justiça do Trabalho pode dirimir conflitos trabalhistas e dizer se, numa relação de prestação de serviço, há ou não vínculo empregatício. Esta norma está expressa de forma clara no artigo 114, inciso VII, da Constituição. Além disso, o artigo 50 do Código Civil e o artigo 129 da lei 11.196, de 21 de novembro de 2005, também exigem sentença judicial para esse caso.

Em outras palavras, a aludida emenda não constitui nenhuma inovação, pois apenas ratifica o que já dispõem as leis brasileiras. Ela se tornou, porém, necessária em função de uma prática que, apesar de contrariar a norma legal, vinha-se tornando rotineira. Essa atuação indevida estava levando insegurança às empresas prestadoras de serviço, que, de uma hora para outra, eram ilegalmente desconsideradas como tal e se viam tendo de arcar com impostos que não deviam de fato. Em um país de grande energia empreendedora, o efeito danoso para o crescimento da economia que esse tipo de ação vem causando é evidente. A emenda nº 3 sanou essa situação.

Aprovado o dispositivo, porém, uma campanha de desinformação começou a tomar corpo, tendo como objetivo levar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a vetá-lo.

A má informação domina o debate. Alguns dizem que a ação dos auditores fiscais da Receita Federal fora restringida. Outros argumentam que a missão dos auditores fiscais do trabalho e do Ministério Público do Trabalho, no combate às ilicitudes trabalhistas, seria prejudicada. E, de uma maneira absurda, cogitou-se que a luta contra o trabalho escravo sofreria abalo devastador. Insinuaram ainda que a emenda tinha por objetivo beneficiar "empresas de uma pessoa só".

É preciso repudiar, com veemência, esses equívocos:

1. A emenda não restringe as atribuições dos auditores-fiscais da Receita Federal, que poderão continuar fiscalizando normalmente as empresas de prestação de serviços - dentro dos limites de sua competência estabelecidos em lei;

2. A emenda não subtrai o poder dos auditores-fiscais do trabalho nem do Ministério Público do Trabalho, mas, ao contrário, resguarda-o, impedindo que suas funções sejam usurpadas por outros profissionais. É bom que fique bastante claro que a emenda trata apenas das atividades dos auditores da Receita Federal, não podendo, portanto, interferir em outras categorias. O combate ao trabalho escravo não sofrerá nenhuma restrição e nem seria admissível que sofresse qualquer tipo de limitação ou constrangimento.

3. As sociedades de prestação de serviços se constituem sob o devido amparo legal da Constituição, do Código Civil e dos órgãos competentes para expedição de CNPJ, Inscrição Municipal etc. São milhares de empresas que prestam serviços profissionais, contribuindo de forma decisiva para o desenvolvimento do país. É preciso ressaltar que o artigo 129 da lei 11.196, de 21 de novembro de 2005, ratificou que, para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços profissionais por pessoa jurídica, em caráter personalíssimo ou não, é tributada com base na legislação aplicável tão-somente às pessoas jurídicas - conforme estabelecido desde a lei 9.430, de 1996, em seus artigos 55 e 56.

Por tudo isso, a nação brasileira espera que o presidente Lula sancione a lei que criou a "Super-Receita", preservando a integridade da emenda nº 3. Essa atitude será, mais uma vez, a demonstração cabal de que o presidente prestigia os pressupostos da democracia, um sistema em que todos devem atuar de acordo com a lei, em que um Poder não deve usurpar as funções de outros, e em que nenhum dispositivo é considerado supérfluo quando seu objetivo é assegurar legítimas prerrogativas da cidadania.

ARMANDO MONTEIRO NETO é presidente da Confederação Nacional da Indústria.