Título: Desconsideração em matéria tributária
Autor: Maciel, Everardo e Martins, Ives Gandra da Silva
Fonte: O Globo, 01/03/2007, Opinião, p. 7

TEMA EM DEBATE: Fiscalização de empresas

Foi incluída, na discussão do projeto de lei conformador da denominada Super-Receita, emenda proposta por parlamentares e aprovada pela Câmara dos Deputados sobre a impossibilidade de desconsideração da pessoa jurídica por atos de auditor fiscal da Receita Federal.

A emenda, na verdade, apenas reitera aquilo que - desde a sistematização do Direito Tributário Brasileiro, com as discussões do anteprojeto do Código Tributário Nacional (década de 50 e princípios de 60), emenda constitucional 18/65 e promulgação da lei 5.172/66 - os pais do atual sistema tributário já entendiam ser de impossível adoção.

Estudos, livros, simpósios, congressos foram realizados, com a presença dos melhores especialistas na área, nas décadas de 60 a 90, todos eles hospedando o princípio da estrita legalidade, ou seja, em matéria tributária, a lei deve conter a totalidade dos aspectos impositivos, não se permitindo flexibilidade exegética, integração analógica ou interpretação extensiva com a finalidade de alargar o campo da tributação para além da definição legal. A lei deve conter, por inteiro, a hipótese de imposição. Ao Estado, tudo é permitido, dentro da lei; nada fora dela. À espada da imposição governamental cabe a defesa do contribuinte mediante o escudo da lei. A Constituição de 1988, em seu artigo 150, inc. I, reiterou que, no campo tributário, a legalidade já prevista no art. 5º implica a tipicidade fechada, inextensível, inelástica no que diz respeito à exigência fiscal.

Em 2000, um dos autores deste artigo sugeriu ao presidente da República que enviasse ao Congresso Nacional projeto de lei complementar, incluindo, no artigo 116 do CTN, norma prevendo autorização para que a autoridade fiscal pudesse adotar práticas desconsiderativas, condicionada à edição de lei ordinária estabelecendo procedimentos precisos a ser seguidos pela administração. Tal projeto veio a ser aprovado, convertendo-se na lei complementar nº 104/00.

Desconsideração, no campo do direito, é desprezar a forma jurídica adotada para a constituição de uma determinada relação, impondo outra.

Imediatamente, órgãos de classe com legitimidade ativa junto ao Supremo Tribunal Federal ingressaram com ação direta de inconstitucionalidade em face dessa norma, que permite o alargamento das hipóteses impositivas, não tendo a Suprema Corte, até o presente, apreciado a ação.

Ainda no governo anterior, editou o presidente da República a medida provisória de nº 66, cujos arts. 13 a 19 previam os procedimentos a que se referia a lei complementar 104/00. Porém, o Congresso Nacional, ao converter a MP, rejeitou os arts. 13 a 19. Desta forma, inexiste lei instituindo o procedimento administrativo a ser seguido pela administração para a adoção de práticas desconsiderativas, o que implica permanecer sem eficácia a lei complementar nº 104/00.

O fato, todavia, de, apesar de não ter sido veiculada a lei ordinária, as fiscalizações terem principiado a desconsiderar atos e pessoas jurídicas, como se lei houvesse, levou o Congresso a veicular o art. 129 da denominada "MP do Bem", com a seguinte dicção: "Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da lei nº 10.406, de 10/01/2002 - Código Civil."

Referida norma já veda, proíbe, interdita que a fiscalização desconsidere atos e pessoas jurídicas para autuar empresas, a pretexto de que deveriam ser tributadas como se fossem pessoas físicas.

Apesar da clareza da lei, o seu descumprimento pelo Fisco da União continuou, fazendo com que o Poder Judiciário ficasse entulhado de processos tendo por objeto questões que sequer deveriam ter surgido. Não sem razão, os magistrados atribuem a lentidão do Poder Judiciário ao fato de que em torno de 70% de todas as ações em curso têm como parte o poder público.

A emenda aprovada pelo Poder Legislativo, portanto, não foi senão uma espécie de "ordem de serviço legislativa" dirigida aos auditores fiscais, para que cumpram a lei já existente e não autuem as pessoas jurídicas prestadoras de serviços como se pessoas físicas fossem. Até porque, não obstante autuadas pela fiscalização federal, tais pessoas jurídicas continuam sendo consideradas empresas pelo Fisco municipal, para fins de exigência de ISS. Verifica-se, assim, curiosa e esdrúxula situação: são pessoas físicas para o Fisco federal e jurídicas para a fiscalização municipal.

Na verdade, o dispositivo proveniente da emenda incluída na legislação instituidora da Super-Receita não cria nada de novo. É meramente explicitador ou pura reiteração do que já existe no sistema tributário vigente, que proíbe a fiscalização de desconsiderar atos e pessoas jurídicas, se e enquanto a legislação ordinária não estabelecer procedimento próprio para que a Administração possa fazê-lo, nos termos da lei complementar 104/00.

Em linguagem acadêmica, o dispositivo é apenas um "pleonasmo enfático". Vetar tal dispositivo, portanto, como sugerido por algumas autoridades, seria um verdadeiro contra-senso.

EVERARDO MACIEL é ex-secretário da Receita Federal e IVES GANDRA DA SILVA MARTINS é advogado.