Título: Todo poder ás comunidades
Autor: Cavalcanti, Bianor Scelza
Fonte: O Globo, 02/03/2007, Opinião, p. 7

A discussão do apagão da segurança pública no Rio de Janeiro é lenta, freqüentemente desestimulante, com funestas conseqüências para a formulação de políticas públicas mais efetivas.

Recentes manifestações de políticos, policiais e cientistas sociais estimulam a apresentação de idéias para a dinamização e inovação desse debate. Submeto alguns pressupostos e uma proposta para discussão.

É preciso definir a natureza dos atos de violência perpetrados contra a população. A linguagem é o principal instrumento humano a serviço da cognição e construção social. Este passo já foi dado. Na definição precisa de "terrorismo", veio o reconhecimento de sua natureza política, tipificada pela intenção de influenciar escolhas públicas de agentes sociais legítimos, sejam eles governantes, comandos policiais, empresários ou população.

A milícia é problema, não é solução. Mas quem pretende formular e implementar política pública deve viver com a comunidade seu contexto, sua história e cultura, para direcionar o sentido e a intensidade das mudanças. Há que se aprender, no presente, com as manifestações dos grupos sociais, que se reinventam para sobreviver. Por exemplo, as milícias recebem simpatia e apoio, embora à margem da lei.

Políticas públicas têm um caráter intersetorial. A segurança pública não pode ser analisada isoladamente da educação, da saúde, da habitação, do saneamento, da energia e da cidadania. Ninguém é cidadão, dentro ou fora da favela, se não tem tais direitos garantidos. Nesta natureza integrativa do conceito de cidadania residem sua originalidade e força motriz para a sociedade.

Como gerar autêntica e verdadeira mudança a partir desses pressupostos?

Nosso sistema republicano federalista, bem ou mal, funciona, mas deve ser aperfeiçoado em suas instâncias. Há vazios de poder, nichos onde se nutrem carências de nossas comunidades urbanas pobres.

Proponho que essas comunidades devam ter poder real e oficial para administrar seu cotidiano, com seus recursos próprios somados a transferências fiscais que se façam necessárias.

Recomendo a criação de um novo ente, como subdivisão dos municípios, e não coincidente com os distritos ou administrações regionais de bairro, de caráter administrativo. A comunidade de grande porte deve conquistar, constitucionalmente, atributos de governança urbana autônoma. Deve eleger seu administrador, seu corpo deliberativo, suas instâncias jurídicas, sua polícia, seus fiscais, seu sistema de saúde de atendimento imediato, sua base escolar etc.

Os recursos humanos devem, preferencial, rápida e progressivamente, advir da própria comunidade, mediante ação educacional afirmativa. Pessoas devem ser credenciadas profissionalmente para atuar no território e gerar renda própria. Administrativamente, o poder fiscal, para a realização de receitas e eficiência das despesas, seria sem dúvida mais efetivo.

Os "gatos", hoje incobráveis, códigos de postura urbana e de segurança hoje ignorados, a expansão comunitária incontida, entre outras constatações, reforçam minha convicção de que a solução deve ser mais corajosa e radical do que aquelas restritas aos interesses corporativos e politiqueiros.

A forma aqui proposta é mais legítima, eficaz e eficiente.

Silencio à crença elitista de que tal circunscrição política e administrativa estaria sujeita a altos níveis de corrupção e incompetência, tendo em vista nossa experiência.

O Estado não tem o dever de entrar na favela e, sim, o dever de estar na comunidade, com uma configuração institucional particular, complementar, nova em nossa cultura política urbana e em maior sintonia com sua complexa realidade.

BIANOR SCELZA CAVALCANTI é diretor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (Ebape/FGV).