Título: Eua são o problema, não a China
Autor: Rodrigues, Luciana
Fonte: O Globo, 03/03/2007, Economia, p. 28
Cenário é menos favorável agora que em maio de 2006
Para economista, crise nas bolsas pode afetar consumidores americanos
Diretor-executivo do Banco Mundial (Bird), o economista Otaviano Canuto é um estudioso da arquitetura financeira global. De passagem pelo Rio, onde participa de um seminário sobre a reforma do sistema FMI-Bird, Canuto disse ao GLOBO que é impossível prever até onde vai a atual correção de preços nas bolsas de valores do mundo. Mas acredita que o risco de uma crise financeira está nos Estados Unidos, e não na China.
Luciana Rodrigues
A turbulência que afetou as bolsas mundias esta semana é passageira?
OTAVIANO CANUTO: O quadro em que estávamos era de conto de fadas, com volatilidade muito pequena e várias oportunidades de ganhar dinheiro fácil. Nas operações de carry trade (na qual o investidor capta recursos a juros menores e aplica em outro lugar em busca de retornos maiores, porém mais arriscados), as apostas especulativas estavam sendo feitas entre países emergentes. O operador pegava dinheiro no Chile para aplicar no Brasil, por exemplo. Como a volatilidade tem sido baixa, basta um pequeno diferencial de juros para o investidor ter ganhos.
Qual é o risco dessas transações?
CANUTO: É uma operação diferente da simples arbitragem (troca de juros menores por maiores), porque tem um conteúdo especulativo. Nesse tipo de investimento, não há hedge (proteção contra risco). Então, bastava ter um gatilho qualquer para os mercados caírem.
E esse gatilho pode desencadear uma crise maior?
CANUTO: Nesses casos, ninguém sabe até onde vai esse movimento, em que medida essa correção de preços pára em si mesma ou se gera outras crises. O que dá para dizer é que a confiança em uma turbulência temporária era maior em maio do ano passado (quando os mercados caíram com o temor de alta de juros nos EUA) do que é agora. Mas os fundamentos macroeconômicos são sólidos e os indicadores apontavam para uma desaceleração suave do crescimento mundial.
O risco, então, é a China?
CANUTO: O mercado acionário chinês não é relevante para a China e muito menos para os mercados globais. E não há temor de desaceleração brusca na China. O risco está nos Estados Unidos, no mercado imobiliário americano. É preciso ficar atento aos financiamentos imobiliários concedidos a clientes que não são de primeira linha.
Por quê?
CANUTO: O setor de hipotecas cresceu muito nos Estados Unidos e acabou abrangendo clientes de segunda linha. O risco é de uma falência pesada ou de algum tipo de restrição nas hipotecas que acabe se refletindo no crédito ao consumidor como um todo nos EUA. Os instrumentos de derivativos de crédito se sofisticaram muito, permitindo esse crescimento fantástico dos financiamentos. Mas, como tudo na vida, eles têm um lado negativo, que é a sua opacidade. Ninguém sabe direito onde está o risco nesse tipo de operação. Um financiamento imobiliário é transformado em título e vendido a terceiros. E os mercados hoje são muito interligados. Perdas nas bolsas de valores podem levar os fundos a se desfazerem de outros ativos, ou seja, pode haver contaminação.
Reações em cadeia com derivativos já quebraram um grande fundo, o LTCM, que perdeu bilhões após a crise russa, levando pânico ao mercado.
CANUTO: A diferença é que agora não estamos falando de um fundo de investimento, e sim do crédito às famílias. O mercado financeiro americano tem mostrado uma resistência enorme a crises, como a falência da Enron (em 2001) ou o rebaixamento das avaliações de risco da GM e da Ford (em 2005). Mas o problema agora está no crédito dos consumidores.
Uma crise nos EUA seria diferente das anteriores?
CANUTO: Completamente diferente. Não teria nada a ver com as crises asiática ou russa. Entretanto, os países emergentes sofreriam mais, por causa da fuga por qualidade (investidores buscando ativos mais seguros). O Brasil está numa situação confortável. Mas países com déficit em conta corrente, como Hungria, Turquia e África do Sul, poderiam ser afetados.
É grande esse risco?
CANUTO: Não dá para saber neste momento. A base de fundamentos econômicos é sólida. A despeito dos desequilíbrios americanos (déficit em conta corrente e déficit fiscal), há uma vontade do resto do mundo de continuar financiando os EUA. Estamos vivendo o ciclo de expansão econômica mais poderoso desde os anos 60. Para quem dizia que o capitalismo não seria mais capaz de gerar uma era de ouro, os últimos anos provam o contrário.