Título: Em nome da razão
Autor: Serra, José
Fonte: O Globo, 04/03/2007, Opinião, p. 7

A violência praticada por adolescentes que já podem distinguir o bem do mal, o legal do ilegal, o lícito do ilícito preocupa todas as grandes cidades do país. Está evidente que os instrumentos legais hoje disponíveis não respondem mais às urgências postas. Se a mudança da maioridade de 18 anos para 16 mais divide a sociedade do que a une, isso não significa que devamos ficar de braços cruzados. É preciso adotar medidas que respeitem as regras da boa administração: foco, reconhecimento da dimensão de um problema, trabalho intenso e permanente.

A maioria dos estudiosos concorda que o número de adolescentes violentos, capazes de cometer até crimes hediondos, é pequeno, em termos relativos. Na maioria dos estados, envolve 5% do total de internados. Em São Paulo, onde a população de jovens internados fica em torno de 5.000, os indivíduos mais perigosos são cerca de 750, não passando de 15%. Em outras regiões do país, as proporções devem ser parecidas.

É nesse universo que estão os jovens que produzem tragédias que deixam o país em estado de choque, seja a morte do pequeno João Hélio, no Rio, ou o massacre de um casal de namorados que decidiu acampar na cidade do Embu, na Grande São Paulo, há pouco mais de três anos. São sintomas de um problema mais geral, de que essas ocorrências são exemplos extremos. Anteontem, a polícia deteve um jovem que participava do seqüestro de um bebê de sete meses, bem como da mãe e da avó do menino.

Por mais que se possa associar a ocorrência de crimes à falta de oportunidades na vida - e, muitas vezes, é correto ressaltar essa relação -, estamos falando de adolescentes que carregam traços particulares e distúrbios pessoais e familiares. Seu drama faz parte do drama social do país. Mas seria absurdo considerá-los efeito direto somente da má distribuição de renda ou das baixas taxas de crescimento econômico. Representam a si próprios, em seu abismo e seu horror. E a sociedade não pode deixar de se defender.

Não acredito que o rebaixamento da maioridade penal seja necessário, desejável ou factível, dada a discórdia que provoca. Mesmo quem patrocina a idéia concorda que é uma proposta de difícil aprovação e complicada execução. Precisamos de respostas eficientes, para serem aplicadas o quanto antes. Por isso, considero mais efetivo e racional promover mudança no artigo 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente, aquele que define que, "em nenhuma hipótese, o período de internação excederá a três anos" e que "a liberação será compulsória aos 21 anos de idade".

São regras criadas pela boa intenção, própria de um mundo menos perverso, mas que caducaram na ineficácia. O limite para a internação deve ser ampliado para dez anos nos casos de adolescentes excepcionalmente violentos. E não há motivo para que uma pessoa de comportamento comprovadamente perigoso seja colocada na rua apenas porque tenha completado 21 anos.

Ninguém pretende abrir mão do papel do Estado para tentar reeducar e recuperar essas pessoas. Por essa razão, também defendo a criação de um regime de internação em separado para os jovens que já completaram 18 anos e que permaneceriam sob a guarda do Estado. Não poderiam conviver nem com adultos do sistema penitenciário nem com outros adolescentes que cometeram infrações menos graves.

A experiência de educadores e profissionais indica que teríamos benefícios variados com essas mudanças. A primeira vantagem seria prática. Na cidade de São Paulo, os internos são adolescentes de 16 anos, em média. Dadas as regras em vigor, são soltos, no máximo, em três anos. Uma parte deles cai na reincidência depois de voltar para a rua. A ampliação do período de internação para dez anos altera muita coisa.

Outro efeito seria o de separar o jovem envolvido num pequeno delito daquele que cometeu latrocínio, estupro ou outros crimes graves. O teto atual de três anos nivela os crimes por baixo e cria uma situação geral de injustiça e impunidade. O exame do perfil dos internados demonstra que seus períodos de internação costumam ser definidos de acordo com a resposta do adolescente ao tratamento e conforme a convicção de cada juiz, apoiado em laudos técnicos.

São compreensíveis os esforços das autoridades para manter em regime de internação aqueles adolescentes de alta periculosidade, pois o bom senso recomenda que permaneçam em instituições fechadas. A criação de uma legislação mais adaptada às necessidades da vida moderna também reforçará o estado de direito. Não se imagina que a violência de adolescentes infratores será eliminada exclusivamente com medidas repressivas. Esta é uma ilusão, de valor idêntico ao argumento de que é preciso cruzar os braços até que a distribuição de renda seja resolvida. Não se podem ignorar a importância da educação, de uma assistência social digna desse nome e da geração de mais empregos para as famílias. Sem esse esforço, não há horizonte possível. Mas também é preciso deixar claro qual é o papel do Estado na defesa dos cidadãos.

As sociedades andam sempre mais depressa do que as leis, seja nas coisas positivas, seja, infelizmente, nas negativas. A boa legislação é aquela que procura disciplinar essas realidades e responder aos problemas, tendo como horizonte a paz social e o cumprimento da lei maior, a Constituição. Não adianta afirmar que inexiste solução mágica para a violência. Disso todos já sabemos. Os brasileiros não estão cobrando uma resposta dos mágicos, mas das autoridades públicas, que têm o mandato das urnas e da lei para responder às suas angústias. Ora, se esse arcabouço legal se mostra ineficaz - e, eventualmente, contraproducente -, que seja, então, mudado. Dentro das regras da democracia e do estado de direito. É o que queremos.

JOSÉ SERRA é governador de São Paulo.