Título: Fronteira do crime e do terror
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 04/03/2007, O Mundo, p. 36

Contrabando e tráfico na região entre Brasil, Argentina e Paraguai financiam radicais islâmicos.

Nas próximas semanas, o Paraguai começa a julgar Kassen Mohamad Hijazi, de 46 anos, dono de empresas em Ciudad del Este e em Foz do Iguaçu, onde reside. Ele é acusado de comandar a lavagem de US$100 milhões em cinco anos, na fronteira do Brasil com o Paraguai e a Argentina, para o Hezbollah (ou Partido de Deus) - organização libanesa classificada como terrorista nos Estados Unidos, em Israel e na Argentina.

Entre 1998 e 2003, com a ajuda de 46 pessoas, Hizaji teria usado 130 casas de câmbio e bancos no Brasil e no Paraguai para realizar transferências ilegais a 1.500 contas bancárias no Líbano, EUA e Chile.

Hizaji é um dos ativistas islâmicos identificados na tríplice fronteira. Seus negócios foram desvendados num rastreamento financeiro de escala mundial que a CIA e o FBI iniciaram no dia 13 de setembro de 2001.

A devassa começou 48 horas depois dos ataques terroristas às Torres Gêmeas, em Nova York, e à sede do Pentágono, em Washington. A companhia americana First Data Corporation se ofereceu para ajudar o FBI a desvendar as finanças dos terroristas do 11 de Setembro. Ela controla a maior parte do processamento de cartões de crédito no mundo e detém a Western Union, cujos serviços de remessas são intensivamente usados em 22 países árabes, com 300 milhões de habitantes.

Número recorde de inquéritos em 2006

O Paraguai, como o Brasil, não tem leis antiterrorismo e costuma tratar casos suspeitos de financiamento a grupos radicais com base em leis tributárias. Sob pressão americana, tem usado dados desse rastreamento mundial para sugerir à promotoria a abertura dos inquéritos por suspeita de lavagem de dinheiro.

Entre janeiro e setembro do ano passado foram feitas mais de três mil comunicações - quase quatro vezes o volume registrado no Brasil no ano inteiro. A maior parte, aparentemente, nada tem a ver com contribuições ao caixa de extremistas islâmicos.

Na Justiça local, porém, há meia centena de casos onde se acumulam evidências de que ativistas estabelecidos na tríplice fronteira ajudam a financiar organizações como Hezbollah, Hamas, al-Qaeda, Muqawama al Lubnaniya, al-Tablik e al-Gamaa al-Islamiya, entre outras, com base em negócios ilícitos de pirataria, contrabando e tráfico de drogas.

As remessas são feitas a empresas e entidades beneficentes vinculadas a esses grupos. O Hezbollah, cuja política freqüentemente está alinhada à Síria e ao Irã, emerge como principal beneficiário. Atua como partido no Parlamento libanês, mantém uma grande rede assistencial e financia, parcialmente, grupos menores como Hamas, Jihad Islâmica e a Brigada dos Mártires de al-Aqsa.

O rastreamento das finanças de Kassen Mohamad Hijazi, por exemplo, teve desdobramentos em investigações sobre atividades de pirataria e tráfico de drogas. E essas conduziram a pessoas vinculadas a outro libanês, Assad Ahmad Barakat - preso no Brasil e extraditado para Assunção em 2002 onde foi condenado por lavagem de dinheiro.

Para os EUA, Barakat era um tesoureiro do Hezbollah na América do Sul. Supostamente coordenou remessas em soma superior a US$150 milhões num período de sete anos. Sua prisão e extradição pelo Brasil motivou Harry Temple, chefe do Departamento Hezbollah, Irã e Palestina do Centro de Contra-Terrorismo da CIA, a um inusitado agradecimento público, em dezembro passado, durante um seminário em Brasília:

- Eu passei algum tempo na tríplice fronteira e vi as coisas em primeira mão. Conheço a área e tenho familiaridade com o assunto. No CTC temos muitíssimo interesse e já dedicamos muito tempo refletindo sobre o que ocorre ali. Devo dizer que realmente somos muito gratos pelo fato de o governo brasileiro ter extraditado o líder do clã Barakat para o Paraguai.

Na época da prisão, Barakat residia em Foz do Iguaçu. Teve a vida financeira devassada a partir do rastreamento de negócios imobiliários em Beirute, todos acima US$100 mil, realizados pela Mondial Co., uma da suas empresas com sucursais no Paraguai, no Líbano e no Chile.

Investigações financeiras e policiais em diferentes países - incluindo o Brasil - e sempre sob orientação de órgãos de informação americanos, levaram a outras prisões. Uma delas foi a de Ali Assi no aeroporto de Beirute com 10 quilos de cocaína na bagagem. Assi tinha negócios no comércio da tríplice fronteira, em sociedade com Sobhi Mahmoud Fayad. E ambos mantinham residência e escritórios em Foz do Iguaçu.

Na devassa policial a que foram submetidos surgiram evidências de partilha de caixa com o "clã" Barakat. Assi continua preso no Líbano. Fayad foi condenado a seis anos de prisão no Paraguai, por evasão fiscal. Já cumpriu dois terços da pena e, agora, pleiteia liberdade condicional.

As alianças com a máfia de Hong Kong

Pouco tempo depois, a Polícia Federal brasileira prendeu em São Paulo o libanês Bassam Naboulsi, um parente de Assad Barakat e, também, comerciante na tríplice fronteira. Foi detido sob a acusação de traficar 400 quilos de cocaína colombiana, via Foz do Iguaçu, para a capital paulistana. Na mesma investigação foram feitas outras 14 prisões em Foz e Ciudad del Este. Todos têm laços de parentesco e integram o "clã" Barakat.

Alguns escaparam. Um deles foi Salman Reda, também sócio dos Barakat. Reda foi acusado pela promotoria da Argentina de ter organizado o transporte até Buenos Aires dos explosivos usados no atentado contra a Embaixada de Israel, em 1992.

Outro fugitivo é Hassam Ali Barakat. Sua rede de negócios incluía o indiano Rajkumar Naraindas Sabnani, com empresas em Hong Kong, Praga e escritórios em Foz do Iguaçu, Ciudad del Este e Buenos Aires.

Naraindas, como é conhecido, é considerado foragido no Paraguai. O rastreamento de suas finanças expôs negócios tanto com empresas do "clã" Barakat quanto outras, reputadas na polícia por ligações com a máfia de Hong Kong. Ele teria começado na fronteira como fornecedor de produtos piratas. Depois assumiu um duplo papel: tornou-se intermediário de operações de lavagem de dinheiro para diferentes grupos radicais islâmicos - inclusive a al-Qaeda - em associação com facções da máfia chinesa.

O Hezbollah funciona como um conglomerado político. Uma de suas facções é o grupo Muqawama al-Lubnaniya, instalado em Foz do Iguaçu a partir de uma série de reuniões organizadas por Ali Kalil Merhi. Ele estava preso por lavagem de dinheiro quando se descobriu em um dos seus galpões 80 máquinas com capacidade para clonagem de 20 mil CDs por dia. Mehri atuara com extrema desenvoltura: registrara como sua a marca Play Station e, assim, obrigou o grupo Sony, real proprietário, a uma longa disputa nos tribunais paraguaios.