Título: Região seria alvo de ataque americano
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 04/03/2007, O Mundo, p. 37

Após 11 de Setembro, EUA traçaram estratégia antiterror que incluía ação na tríplice fronteira antes do Afeganistão

José Casado

Na tarde de terça-feira, 18 de setembro de 2001, uma semana depois dos ataques terroristas às Torres Gêmeas, em Nova York, e à sede do Pentágono, em Washington, o presidente Fernando Henrique Cardoso atendeu a um telefonema de George W. Bush no Palácio do Planalto. Ele respondia a uma ligação que o presidente brasileiro fizera no dia seguinte aos atentados.

- Era para dizer que me solidarizava com o povo americano e que me pareceu oportuna e correta a visita que ele fez a uma mesquita em Washington, separando terrorismo de religião - conta Fernando Henrique.

Nunca houve empatia entre ambos, mas Bush naqueles dias era o líder de uma nação ferida, um governante em preparação para uma guerra contra um inimigo quase invisível: não havia um Estado a atacar, um governo a derrubar, uma cidade específica a bombardear - somente fanáticos terroristas, até então pouco conhecidos, espalhados por quatro continentes e camuflados no mapa-múndi de um bilhão de fiéis muçulmanos que rejeitam a jihad (guerra santa) como modo de vida.

Um ataque para surpreender

Fernando Henrique visitara a embaixada americana em Brasília, para assinar o livro de pêsames às famílias das vítimas. E negociava com os presidentes do Chile, da Argentina e do Uruguai uma ação diplomática coletiva de respaldo aos EUA na reunião da Organização dos Estados Americanos, no dia seguinte. Antes de se despedir, Bush pediu apoio para as medidas de guerra que viria adotar.

Telefonemas entre chefes de Estado sempre são gravados no Planalto. Dessa vez, o presidente fez questão de mandar rapidamente uma transcrição ao Itamaraty. No gesto apressado aos diplomatas transparecia um laivo de vaidade: da periferia, Fernando Henrique ajudava a fazer história.

Enquanto os presidentes do Brasil e dos EUA conversavam, na sede semidestruída do Pentágono, em Washington, trabalhava-se em um plano de ataque à América do Sul como alternativa para o início da campanha contra o terrorismo islâmico - antes mesmo da invasão do Afeganistão, onde os talibãs abrigavam a al-Qaeda. O plano foi reportado pela revista "Newsweek" em setembro de 2004.

O alvo escolhido na América do Sul foi a região conhecida como tríplice fronteira, uma área de 1,2 mil quilômetros quadrados, em cujo mapa se destacam Foz do Iguaçu (Brasil), Ciudad del Este (Paraguai) e Puerto Iguazu (Argentina). Ali vivem 700 mil pessoas - entre elas 30 mil muçulmanos sob vigilância permanente dos órgãos de segurança brasileiros, argentinos, paraguaios, americanos e israelenses desde o atentado contra a embaixada de Israel em Buenos Aires, em 1992.

A ofensiva foi projetada pela Subsecretaria de Defesa do Pentágono e está documentada em correspondência interna obtida por uma comissão independente, escolhida pelo Congresso americano. A existência do plano foi registrada por essa comissão bipartidária (veja reprodução ao lado) numa nota de rodapé no relatório (2004) sobre os erros cometidos pelo governo Bush antes, durante e depois do 11 de Setembro. Os papéis permanecem sob sigilo, não se sabe se chegaram à Casa Branca. Fernando Henrique diz que nada soube:

- Eu nunca tive qualquer informação sobre um eventual ataque dos EUA à América do Sul, coisa, aliás, sem o menor cabimento - afirma. - O presidente Bush jamais mencionou a mim qualquer coisa a respeito.

Naquela manhã, os jornais estampavam o texano Bush acusando pela primeira vez o saudita Osama bin Laden, líder da al-Qaeda:

- Procurado: vivo ou morto - ele anunciou, na tradição do velho Oeste.

Coberto de poeira, cinzas e sangue, o distrito financeiro de Manhattan era o emblema de um novo mundo. Os escombros do Pentágono prenunciavam dias quase tão importantes quanto o 11 de Setembro, quando um fanático habitante de uma caverna nas montanhas do Afeganistão mandara explodir ícones da economia e da segurança da civilização moderna, matando mais de três mil pessoas - cidadãos de 40 países, entre eles cinco brasileiros.

Cargueiro americano assustou moradores

Antes de Fernando Henrique e Bush desligarem os telefones, o Ministério das Relações Exteriores já recebia informações sobre a inclusão da América do Sul no mapa da nova guerra dos EUA. Mas a burocracia do Itamaraty tratou como rotina os despachos do embaixador brasileiro em Assunção, Luiz Augusto Castro Neves, sobre uma movimentação inusitada na tríplice fronteira.

Aos 58 anos e três décadas e meia na carreira, Castro Neves era um diplomata grisalho de muitas crises. Seus informes desse dia exalavam ansiedade.

Turbinado por sucessivas xícaras de café, relatou a Brasília como, na madrugada anterior, o ronco de um cargueiro militar americano assustou moradores da pachorrenta vila de Mariscal Estigarribia, no meio do inóspito chaco paraguaio, distante 300 quilômetros da fronteira do Paraguai com o Brasil e a Argentina. A guerra global de Bush estava começando.