Título: A mente polêmica por trás da estratégia
Autor: Casado, José e Passos, José Meirelles
Fonte: O Globo, 04/03/2007, O Mundo, p. 39

Idéia de atacar a tríplice fronteira seria de Douglas Feith, acusado de inventar justificativas para a invasão do Iraque.

Uma semana depois dos atentados em Nova York e Washington, o presidente George W. Bush enviou tropas para caçar o saudita Osama bin Laden no Afeganistão. Repetia, na decisão, o antecessor Woodrow Wilson, que no começo do século passado mobilizara o Exército dos EUA na caçada ao bandoleiro mexicano Pancho Villa, o terrorista da época para colonos americanos recém-chegados à fronteira com o México.

Havia o risco de a guerra de Bush no Afeganistão se resumir ao lançamento de mísseis de US$2 milhões contra tendas de US$1. E isso era muito pouco, ou nada, para o subsecretário de Defesa Douglas Feith, um dos formuladores do projeto de um ¿novo século americano¿, acalentado pelo vice-presidente Dick Cheney e pelo secretário de Defesa, Donald Rumsfeld.

Aos 49 anos, Feith ¿ Doug para os íntimos ¿ vivia um momento especial, depois de servir como assessor a dois governos republicanos (Reagan e Bush pai). Agora, ocupava a sala de número três do Pentágono, abaixo do secretário Rumsfeld e do do vice-secretário Paul Wolfowitz, hoje presidente do Banco Mundial. O trio no Pentágnono encarnava a síntese do novo conservadorismo (neocon, no linguajar político de Washington) que caracteriza a era George W. Bush.

Advogado laureado nas universidades de Harvard e Georgetown, Feith emergira na cena política americana como lobista das indústrias aeroespacial e nuclear. E, principalmente, pelos sólidos vínculos com organizações como o ultraconservador Jewish Institute for National Security Affairs e facções extremistas do Likud, partido da centro-direita israelense.

A busca pelos alvos `visíveis¿

A militância pró-Israel governa sua biografia. Herdou-a do pai, Dalck, que na juventude atuou no movimento sionista Betar ¿ um braço da Aliança Sionista-Revisionista fundada pelo filósofo ucraniano Vladimir Evgenevich Jabotinsky (1880-1940), também conhecido como Ze'ev (lobo, em hebraico), admirador do fascismo de Mussolini.

Pela dedicação à causa, Feith foi condecorado pela Organização Sionista da América (ZOA, na sigla em inglês), a maior, mais antiga e combativa entidade do gênero nos Estados Unidos. Pelo ativismo, também está sob investigação do FBI como suspeito de repassar segredos militares dos EUA a Israel, em 1982. As informações foram entregues ao governo israelense por um funcionário do gabinete de Feith, quando ele integrava o time de assessores jurídicos do então subsecretário de Defesa Richard Perle.

Na retarguarda da fortaleza semidestruída, Feith tinha sobre a mesa um cardápio limitado de opções para o Afeganistão, oferecido pelos militares, combinado com a explícita indisposição deles e do Departamento de Estado de aceitar, de imediato, o velho projeto de invadir o Iraque.

Sua voz estridente, predileção por idéias grandiosas e reconhecida aversão aos métodos da caserna, fizeram do subsecretário de Defesa um personagem impopular na cúpula das Forças Armadas. Conquistou Tommy Franks, o general que mais tarde comandou as tropas americanas na invasão do Iraque, como um dos grandes desafetos dentro do Pentágono. Depois de passar à reserva, Frank fez um desabafo ao jornalista Bob Woodward e acabou incluindo-o em seu livro de memórias:

¿ Feith é o sujeito mais estúpido na face da Terra.

Naquela quarta-feira, 19 de setembro de 2001, Feith convocou seu assessor Abram Shulsky, um ex-analista da Rand Corporation, para uma busca de alternativas ao bombardeio de tendas e cavernas no deserto remoto. Desejava alvos mais ¿visíveis¿, cuja destruição resultasse inibidora para os terroristas e fosse impactante para o público americano, que já embalava Bush com sucessivos recordes nas pesquisas de popularidade a 38 meses da reeleição.

Os fatos do dia seguinte (20/9) foram resumidos em 90 palavras no relatório da comissão do Congresso: ¿Num memorando que parece ser do subsecretário de Defesa, Douglas Feith, para Rumsfeld, datado de 20 de setembro, o autor manifestou desapontamento com as limitadas opções imediatamente disponíveis no Afeganistão e a falta de opções em solo. O autor sugere, em lugar disso, atacar os terroristas fora do Oriente Médio na ofensiva inicial, talvez escolhendo deliberadamente um alvo não al-Qaeda como o Iraque. Como eram esperados ataques dos EUA no Afeganistão, um ataque americano na América do Sul ou no Sudeste da Ásia poderia ser uma surpresa para os terroristas.¿

A comissão bipartidária teve acesso parcial aos documentos ¿ continuam sob sigilo ¿, mas destaca um deles como fonte: o ¿Memorando do Departamento de Defesa, de Feith a Rumsfeld, `Esboço de Relatório¿, 20 de setembro de 2001.¿ Ressalva que ¿pode ter sido um rascunho nunca enviado a Rumsfeld, ou um esboço de itens sugeridos a Rumsfeld para que apresentasse num relatório ao presidente¿.

Feith, agora com 52 anos, recolheu-se ao silêncio. Aparentemente, prepara sua versão para um livro sobre o período, um dos mais críticos da História americana. Mas quem conviveu com ele não duvida:

¿ Era uma idéia maluca. E só pode ter mesmo saído da cabeça de Feith. No dia em que liberarem os documentos da época, isso certamente vai se confirmar. Ele costumava fazer sugestões tão extravagantes como essa quando era subsecretário de Defesa ¿ disse ao GLOBO um funcionário do Pentágono.

¿ Tivemos notícia dessas idéias do Feith ¿ conta Rubens Barbosa, na época embaixador do Brasil em Washington, um sobrevivente daqueles dias inesquecíveis: ia a uma reunião no Pentágono, na manhã do 11 de Setembro, quando soube do atentado. ¿ Tanto quanto me lembre, e tenho uma lembrança razoavelmente clara do que ocorreu na época, nunca, em nenhum dos meus encontros oficiais ou conversas informais, ouvi a menor sugestão de que os EUA estariam remotamente considerando atacar, muito menos bombardear, qualquer alvo na tríplice fronteira. A idéia deve ter sido expurgada rapidamente, se é que sequer foi considerada seriamente.

Feith tem muitas razões para um voto de silêncio, mesmo temporário sobre temas como esse plano para a América do Sul. Uma das mais importantes está na Comissão de Inteligência do Senado: ali o ex-subsecretário de Defesa é alvo de outra investigação, sob suspeita de falsear informações que levaram o Congresso a apoiar Bush na invasão do Iraque.

¿ Ele enganou tanto a Casa Branca quanto o Congresso, manipulando informações ¿ afirma o senador democrata Carl Levin. ¿ Ele apresentou ao governo análises que todos queriam ouvir.

Levin observa que os dados fornecidos por Feith eram integralmente contestados pela CIA. Acabaram prevalecendo porque Bush ouvia mais o vice-presidente Cheney e o secretário Rumsfeld do que o chefe da agência central de inteligência, George Tenet.

Os dois argumentos centrais na justificativa da invasão do Iraque foram criados a partir de memorandos de Feith para Wolfowitz e Rumsfeld. Eles endossaram e repassaram ao vice Cheney, que os amplificou em discursos: 1) Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa; 2) o ditador iraquiano fizera uma aliança com o terrorista saudita Osama bin Laden. No mínimo, são duas falsificações da história.

Agência plantava notícias falsas

Feith expandiu seu poder no Pentágono ao criar três unidades exclusivas para trabalhar com informações.

Uma delas foi o Escritório de Planos Especiais, onde montou uma equipe com o objetivo de levantar informações sobre intenções ¿hostis¿ do Iraque ou ligações de Saddam com o terrorismo. Na prática, tratava-se de um serviço de informações à margem da CIA e dos serviços militares tradicionais, para municiar Cheney e Rumsfeld. O general Colin Powell, então secretário de Estado, costumava se referir ao Escritório de Planos Especiais como ¿a Gestapo¿ de Feith.

Outra unidade criada foi o Grupo de Avaliação da Política Antiterrorismo, cuja função era a de organizar fatos em apoio à nova doutrina de segurança ¿ a da guerra preventiva.

A terceira agência sobreviveu apenas algumas semanas. O Escritório de Inteligência Estratégica teve suas portas fechadas poucos dias depois de aberto, quando o Congresso percebeu que se destinava a plantar notícias ¿ inclusive falsas ¿ em meios de comunicação estrangeiros. O objetivo era influenciar o público e governos a apoiarem a invasão do Iraque e a derrubada de Saddam Hussein.

Nos arquivos do Pentágono repousam, sob o manto do sigilo, as justificativas para o plano de ataque à América do Sul. Tudo indica ter prevalecido a idéia de um alvo mais ¿visível¿, alternativo ao Afeganistão. Uma idéia cultivada naquilo que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso define como ¿obsessão americana¿:

¿ A preocupação deles com a tríplice fronteira é antiga. Vira e mexe fazem referências. Jamais constatamos células terroristas ou que tais. Possivelmente haja envio de dinheiro ao Hamas ou a outras organizações no Líbano e na Palestina, pois há imigrantes árabes na região da fronteira. Creio que havia, e há, uma obsessão americana quanto à existência de uma zona fora de controle no sul da América do Sul, mas, que eu saiba, isso nunca se transformou em objeto sério de preocupação nas mais altas esferas.

O subsecretário de Defesa Douglas Feith demitiu-se em janeiro de 2005, sob suspeita de falsificar dados para justificar a invasão do Iraque. Governos do Brasil, Argentina, Paraguai, EUA e Israel intensificaram a vigilância sobre os muçulmanos, seus negócios e instituições na tríplice fronteira.

Mulheres e crianças de chador continuam a desfilar pelas ruas calmas de Foz do Iguaçu, mas a inocência dessa fatia do Islã na América do Sul perdeu-se na poeira do 11 de Setembro.

*Correspondente em Washington