Título: Baudrillard e as dores do mundo
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 08/03/2007, O País, p. 4

A última vez em que estive com o filósofo francês Jean Baudrillard, morto na terça-feira, foi há quase um ano, na conferência da Academia da Latinidade em Baku, capital do Azerbaijão. Ele já estava com a saúde seriamente abalada pelo câncer, e foi com enorme sacrifício físico que compareceu pela última vez ao seminário, do qual era participante ativo há anos. Tinha duas razões para tanto: prestigiar seu amigo, o também filósofo brasileiro Candido Mendes, secretário-geral da Academia, e visitar Samarkand, no Uzbesquistão, cidade central da antiga rota da seda, um velho desejo.

O programa oficial da reunião tinha como ilustração a reprodução de uma cabeça de perfil, esculpida em madeira, do poeta do Azerbaijão Aliagha Vahid. Em volta de sua orelha direita, nos cabelos e no pescoço, há várias figuras entalhadas, representando personagens de sua obra. Aquela orelha em primeiro plano pareceu a Baudrillard um sinal, já que o câncer havia atingido seu aparelho auditivo, causando-lhe grandes dores e desconforto.

A palestra de Baudrillard teve características especiais, além de seu pessimismo diante da inutilidade do ser humano no mundo moderno. Parecia que estava se despedindo, com um texto, mais cáustico que o habitual, sobre as doenças do mundo moderno. Num país assolado pela gripe aviária e por uma epidemia de Aids, comparou as doenças globalizadas a atos terroristas, e a cataclismos naturais como o tsunami ou o Katrina.

Esses "acontecimentos-bandidos" provocarão, segundo ele, uma "revolução impossível" no mundo, que Baudrillard via contaminado por um vírus letal que o corrói. O terrorismo teria um impacto sutil e radical, "de uma forma viral e insaciável". Depois dos atentados de 11 de setembro nos EUA, a comunidade internacional entrou em pânico "sob o signo do vírus do terror e do terror do vírus", brincou com as palavras Baudrillard.

Usando metáforas médicas, ele disse que as medidas de segurança matam as liberdades individuais, criando "efeitos perversos auto-imunes: o anticorpo se volta contra o corpo e provoca mais estragos que o próprio vírus". Na ausência de solidariedade entre as nações, Baudrillard dizia que é preciso criar um Mal Absoluto, que gera uma autodefesa delirante, conseqüência de uma "perda de imunidade do imaginário".

O vírus seria um produto da mente, "e se o contágio pode ser assim tão fulminante, é por que as imunidades mentais, as defesas simbólicas estão perdidas há muito tempo". Na sua visão catastrófica, ele perguntava se a espécie humana, "portadora de inúmeros germes", não deveria ser "eutanasiada" com urgência.

Para o filósofo, seria preciso interrogar-se sobre as razões do aparecimento do vírus e a fonte dessas patologias novas, não apenas no reino animal, mas nas sociedades humanas: "Se pode imaginar que elas são conseqüência do confinamento, da promiscuidade, de uma concentração e uma superexploração monstruosas, seqüelas inevitáveis do processo industrial". Para ele, não havia diferença entre o ambiente animal e o humano, pois "as mesmas condições produzem as mesmas anomalias virais e infectuosas".

A espécie humana, levada a engolir "uma louca farinha animal", seria o reflexo dessa vaca louca: "Todas essas mensagens pulverizadas; essa farinha publicitária e midiática; esses dejetos da atualidade com que nos empanturramos - equivalente a essa farinha de ossos, de cadáveres e de carcaças que empanturra os bois - tudo isso aproxima nossa espécie da encefalite esponjosa".

Diante do mundo globalizado e virtual, Baudrillard via o Brasil como possível alternativa de resistência cultural. Em sua palestra na Biblioteca de Alexandria, na reunião da Academia da Latinidade de 2004, ele retomou o tema, desenvolvido antes, quando do lançamento, em Paris, do livro "Uma esquerda que desperta", de Candido Mendes, sobre a campanha de Lula à Presidência.

Baudrillard, mestre da interpretação dos símbolos, via a magia brasileira como "uma espécie de utopia realizada sobre a Terra", mas acrescentava, cético, que "a utopia, quando já realizada, é um pouco perigosa". Ele, desde que fora ao Brasil pela primeira vez, há 20 ou 25 anos, tivera a impressão de que o país constituía "uma espécie de variação, de desvio" em relação ao modelo internacional, um desvio "não revolucionário" singular.

Dois termos o interessavam com relação ao Brasil: o canibalismo e a carnavalização. Para ele, o Brasil era "uma sociedade incomparável, pela mistura, pela relação mestre/escravo, por toda esta cena punitiva, onde se teceram, entre mestres e escravos, um sistema de obrigações, de simbiose", que considerava "a profunda originalidade deste país". Uma de suas metáforas prediletas era a canibalização dos bispos portugueses nas praias brasileiras no século XVI, "onde eles os amavam tanto que os devoraram". E dizia que "o canibalismo é a forma última e mais sutil da hospitalidade".

Para ele, "a sedução é um sistema simbólico de canibalismo, de absorção, um metabolismo diferente do enfrentamento". Ele imaginava que o Brasil poderia constituir "uma espécie de santuário, uma bolsa de resistência contra estes modelos de civilização, por tudo aquilo que devia ser jogo, teatro, carnaval", mesmo admitindo que estava falando "quase de estereótipos".