Título: Lula, Bush e a vizinhança
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 09/03/2007, O Globo, p. 2

Ainda que a visita de George Bush tenha apenas o objetivo de neutralizar, com uma nova atenção à América Latina, a expansão do "bolivarianismo" de Hugo Chávez, o Itamaraty vê nela, e no momento atual das relações Brasil-EUA, uma chance comparável à dos anos 40, quando Getúlio Vargas, explorando as contradições da II Guerra, obteve a ajuda de Roosevelt para implantar a siderúrgica de Volta Redonda, base da industrialização.

Também agora, a política externa brasileira estaria sobrepondo o pragmatismo à ideologia, embora seja acusada de fazer o contrário. A parceria com os Estados Unidos em torno do etanol, objeto do memorando a ser assinado hoje, representaria, diferentemente da Alca, vista como ameaça ao parque industrial nativo, uma oportunidade de desenvolvimento. Talvez as ilusões brasileiras sejam grandes. Entre o desejo do governo Bush de reduzir a dependência de petróleo não-amigo - árabe e venezuelano - existem os interesses dos produtores americanos de etanol de milho, que são contra a retirada das barreiras ao produto brasileiro. Se Lula tocar no assunto, será propondo a redução gradual, que permitiria inclusive o ajustamento da produção brasileira ao aumento da demanda.

Esta visão grandiloqüente de um mundo movido a álcool, no qual o Brasil seria uma potência, desperta sempre o temor de nos transformar num grande canavial. Dá algum sentido à conversa despeitada de Chávez, de que isso fará faltar comida. O ex-ministro Roberto Rodrigues garante que não. Que podemos ainda produzir oito vezes mais que hoje, sem avançar sobre as florestas ou áreas plantadas com culturas alimentares.

Mas mesmo tendo futuro, no próprio governo brasileiro sabe-se que estas negociações são lentas, podendo não avançar nem mesmo na visita de Estado que Lula fará a Bush no dia 31, quando ficará hospedado em Camp David, a residência de campo. O último latino-americano a dormir lá foi o mexicano Salinas de Gortari, em 1991.

Lula insistirá na retomada das negociações comerciais no âmbito da OMC mas, se pudesse, evitaria falar sobre o demônio que incomoda Bush, Hugo Chávez. Mas como as questões políticas da América do Sul serão fatalmente abordadas, Lula tentará evitar que dominem a conversa com argumentos óbvios, tais como a tradicional amizade e cordialidade do Brasil com os vizinhos e a cláusula democrática do Mercosul.

A visita de Bush significa também, para o Itamaraty, uma afirmação da relevância internacional do Brasil. Veremos se desta vez Bush será mais receptivo à aspiração brasileira de ter lugar no Conselho de Segurança da ONU.

Mas para um Brasil empenhado em ser o protagonista impulsionador da integração sul-americana, a visita pode deixar seqüelas na relação com a vizinhança. Em particular com a Argentina, que Bush não incluiu em seu roteiro, embora vá estar na margem uruguaia do Rio da Prata. Em Buenos Aires é que Chávez fará hoje seu protesto. E como há coisas que só a psicologia explica mais que a política, muitos petistas participaram dos protestos de ontem no Brasil.