Título: Yes. Passamos de banana a cana
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 10/03/2007, O Globo, p. 2

Falas com as de Bush e Lula ontem requerem o desconto da teatralidade diplomática. Protocolos como o que assinaram são declarações de intenção, que podem ou não se transformar em gestos. Mas a realidade energética americana (e do mundo) pode levar a um bom casamento de conveniência em torno do etanol. Um sinal disso pode ter vindo da Inglaterra, como a denúncia do jornal "The Guardian", de que o boom do etanol brasileiro é movido a mão-de-obra escrava.

Sabem os ingleses que os engenhos de açúcar no Brasil, ainda na Colônia, eram engrenagens de moer cana e de moer escravos. Primeiros os índios, depois os negros. Trabalho escravo ainda existe no Brasil, e desde o governo passado vem sendo combatido. Mas não nas usinas alcooleiras atuais, expressões capitalistas. Elas tiram a mais-valia da mão-de-obra barata e abundante, sobretudo dos migrantes, mas trabalho escravo nem responderia ao desafio da produtividade.

Para assegurar mercados e sua expansão industrial, no século XIX, a Inglaterra serviu à humanidade combatendo o tráfico negreiro e punindo os países que persistiam na escravidão. Apoiou a independência brasileira mediante a promessa de sua abolição gradual. Ganhou em troca a hegemonia no mercado nascente. Em seu livro "Equador", o escritor português Miguel Sousa Tavares mostra as pressões que a Inglaterra fez sobre Portugal, acusando-o de usar mão-de-obra escrava para produzir cacau mais barato em São Tomé e Príncipe. Acabou fazendo prevalecer o produto de suas colônias. Para tornar-se uma commodity, o etanol brasileiro enfrentará pressões desse e de outro tipo.

Mas, se concretizada a associação tecnológica com os Estados Unidos, objeto do memorando assinado ontem, pode haver, sim, mudança de patamar no relacionamento. Mudar a matriz energética do mundo hoje soa quase como bravata. Mas estão aí a União Européia, a Rússia, a Índia e a China querendo compor, com Brasil e Estados Unidos, um fórum para discutir biocombustíveis. Para vingar, a plantação de Bush e Lula ainda vai precisar de muita água e adubo, sem falar na redução das barreiras ao etanol brasileiro, que Bush descartou.

No plano da vaidade tupiniquim, duas passagens da fala de Bush no terminal da Petrobras foram particularmente saboreadas por figuras do governo brasileiro. Uma, a admissão de que a cana-de-açúcar "é, de longe, a fonte mais eficiente para a produção de etanol". Como sabemos, os americanos usam o milho. A outra, o fato de ele ter tido que fazer um tímido coro ecológico a Lula, que disse e repetiu estar na hora de despoluir o planeta. A ênfase de Bush foi outra. "Nossa dependência de petróleo de outra pessoa significa que estamos dependentes de suas decisões". Quase falou o nome de uma pessoa. Mas quem se recusou a assinou a assinar o Protocolo de Kioto e incendiou o Iraque acabou dizendo, quase de raspão, que "o etanol e os biocombustíveis vão melhorar a qualidade do meio ambiente em nossos países".