Título: O fiscal do fiscal
Autor: Tepedino, Gustavo
Fonte: O Globo, 15/03/2007, Opinão, p. 7

Encontra-se na reta final a tramitação do projeto de lei 6.272-E/2005, que institui a Super-Receita. Submetida à promulgação do presidente da República, a nova lei racionaliza os procedimentos de fiscalização tributária.

Em tempos de reforma legislativa, há de se ter cautela, contudo, com o equilíbrio entre as ações dos fiscais fazendários e da magistratura, para se preservarem as garantias fundamentais da atividade empresarial. Para tanto, o projeto de lei em andamento dota a fiscalização fazendária de amplos poderes, reservando ao Judiciário o controle do expediente que, em direito, se denomina desconsideração da pessoa jurídica.

Trata-se de mecanismo alvissareiro, por meio do qual o magistrado desconsidera a existência da pessoa jurídica e responsabiliza seus sócios por atos que praticaram em nome da sociedade, causando danos a terceiros. Quem não se lembra do acidente do Bateau Mouche, ocorrido no réveillon de 1989, e da corajosa ação da magistratura que, diante do patrimônio pífio da sociedade responsável pela tragédia, determinou a execução dos bens dos sócios abastados, com vistas à obtenção de reparação para as vítimas do naufrágio? Poderosa arma contra os desonestos, o instrumento, entretanto, pode-se transformar em verdadeiro réquiem contra a atividade empresarial. É medicamento extremamente potente e, por isso, não pode ser prescrito senão mediante protocolo rígido, e após atento diagnóstico, sob pena de se deflagrarem efeitos colaterais letais para a livre iniciativa.

Pode a autoridade fiscal atuar diretamente, sem controle prévio do Judiciário, para deflagrar sanções administrativas que lhe são próprias e provocar a repressão civil e penal, inclusive com o apoio do Ministério Público da União, diante de tipificações de delitos e de irregularidades legalmente previstas.

O que não pode é o fiscal - e aqui se estabelece o limite de sua atuação, indispensável ao estado democrático de direito - desconsiderar, pura e simplesmente, a atividade empresarial legalmente constituída, como fato banal e corriqueiro, ignorando a existência de sujeito de direito constituído nos termos da lei, mediante a drástica desconsideração da personalidade jurídica, sem prévio controle judicial.

Por outro lado, o controle judicial à atuação dos agentes fiscais não interfere na valorosa atuação dos agentes do trabalho e, menos ainda, do Ministério Público do Trabalho. Tais órgãos opõem-se, justamente, às pessoas jurídicas de fachada, que funcionam como escudo para crimes contra o trabalhador. Essa ação fiscalizadora há de ser estimulada. O comportamento criminoso, felizmente, não é a regra, mas exceção, e não pode servir de pretexto para se colocar sob suspeita todas as sociedades constituídas para prestação de serviços profissionais. Não se mostra razoável que fiscais tributários venham a desconstituir sociedade legalmente organizada, ao largo do Poder Judiciário, em nome da proteção do trabalhador, considerando, como num passe de mágica, seus sócios empregados, contra a vontade destes e dos fiscais do trabalho.

A autoridade fiscal deve combater com vigor a evasão e a fraude. Mas uma vez constituídas licitamente, e atuando as pessoas jurídicas nos moldes e para os fins que a legislação especial prevê, tertius non datur: ou bem a autoridade fiscal recorre ao Poder Judiciário, com demonstração cabal da inocorrência dos fatos declarados, para declarar a ilicitude dessas sociedades, ou deve se submeter à qualificação societária definida pela iniciativa econômica privada, sob pena de se afigurar abusiva a sua atuação. Em última análise, mostra-se indispensável que, ao lado da renovada fiscalização, afirme-se o direito constitucional à livre iniciativa, à constituição de empresas privadas e à organização de serviços profissionais, por prestadores de serviços, como pessoa jurídica.

Na expectativa da promulgação do projeto da Super Receita, confia-se na sageza do presidente da República que, por seu passado político, certamente não se deixará seduzir por aqueles que advogam o veto ao aludido § 4º, e querem concentrar todos os poderes no fiscal fazendário, afastando o Judiciário do controle de legalidade das pessoas jurídicas legitimamente constituídas. Das noites sombrias dos regimes políticos autoritários extrai-se definitiva lição: a truculência do Estado e a compressão da iniciativa privada são incompatíveis com a economia de mercado e a justiça social.

GUSTAVO TEPEDINO é professor de Direito Civil e ex-diretor da Faculdade de Direito da Uerj.