Título: O terrorismo estatal que nos atinge
Autor: Fakih, Fouad Mohamad
Fonte: O Globo, 16/03/2007, Opinião, p. 7

Há mais de uma década assisto, com preocupação, ao crescimento dos problemas sociais provocados pela ausência do Estado brasileiro na região da tríplice fronteira (Brasil, Paraguai e Argentina).

Tenho visto o avanço das ações de repressão, criticado e feito cobranças. Alguns até se dizem atingidos pela defesa do meu ponto de vista. Não me surpreendem. O que assusta é o silêncio da maioria.

A repressão fiscal, pura e simples, tem sido aplicada de forma sistemática e crescente como remédio para conter a informalidade, o contrabando e o descaminho. Não adiantou, não adianta e nem vai adiantar. O contrabando persiste, cresce e se aperfeiçoa, vazando por todas as áreas brasileiras de fronteira. Cresceu no passado, continuará crescendo diante dos olhos das autoridades brasileiras e da vizinhança sul-americana. De saldo amargo, há a nossa realidade.

Por anos, Foz do Iguaçu foi usada por conveniência para demonstrar a "generosidade" brasileira com o Paraguai. E a massa de excluídos cresceu assustadoramente nos dois lados da Ponte da Amizade.

Sem empregos formais e escassos informais, caiu a renda local. A pobreza e a miséria ganharam espaço e foram debitadas na conta social de Foz do Iguaçu. E toda a fronteira sentiu.

Nunca desisti de tentar provocar o debate. Em maio de 2005, escrevi um documento ("A história de Foz contada pelo fim") entregue a senadores durante a audiência pública realizada na cidade. Destaquei o vínculo econômico das comunidades ligadas pela ponte. E o fiz sem o receio de desnudar as mentiras que imputam à região quando o tema inclui descaminho, pirataria e contrabando. Fui, mais uma vez, voz solitária.

As piores previsões, infelizmente, confirmaram-se. As únicas e permanentes ações do governo - as do seu braço repressivo - continuam a nos empurrar para uma situação socialmente insustentável.

A criminalidade explodiu. Com 328 homicídios em 2006, a violência se tornou banal. A criminalidade abriu espaço para que traficantes acelerem as ações no aliciamento de jovens. Não existem indicadores de qualidade de vida que resistam à marginalização, à exclusão e à falta de perspectiva de desenvolvimento.

Creio, aliás, que seja esse o verdadeiro terrorismo que nos atinge, mas não ganha manchetes ou análises políticas ou sociais. Ele é danoso e destrói valores éticos e morais. É um mal que abala a sociedade e exclui milhares de pessoas sob o olhar indiferente do Estado brasileiro, e de entidades e institutos duvidosos que apóiam a inércia na resposta sociopolítica e aplaudem a "tolerância zero".

Não se trata de proteger ou defender o descaminho e a informalidade dos sacoleiros, que talvez fosse resolvida com algum tipo de regulamentação da atividade. Trata-se, sim, de apontar soluções menos traumáticas para a sociedade.

A questão central é o dever do Estado na proteção do cidadão. O planejamento das ações deve contemplar todos os atingidos pelo ataque. A presença do Estado no cumprimento dos direitos constitucionais de cidadania deve ser mais vigorosa que a repressão.

Não há cobrança neste sentido. Quem deveria nos representar não o faz. Quem deveria nos defender se esconde. Quem deveria apontar soluções se revela perdido e sem propostas capazes de solucionar as dificuldades que se agravam diariamente. Onde estão os projetos? Onde estão os resultados dos incontáveis encontros com autoridades brasileiras e estrangeiras? Quais medidas adotar para reduzir a tensão social?

Agora, diante desse quadro e das reportagens do GLOBO (de 4 a 11 de março), surge a proposta de a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado realizar audiência pública para discutir com a comunidade local os problemas da tríplice fronteira.

Em maio de 2005, a mesma Comissão, por requerimento do senador Álvaro Dias (PSDB-PR), esteve em Foz do Iguaçu com objetivo similar. Não deu em nada. O foco foi perdido a partir do momento que desnudar a realidade ameaçava atingir vaidades políticas. O resultado do encontro foi nulo e tedioso para todos.

Ninguém ousou expor nossos problemas. Jogaram uma lona preta sobre tudo o que nos é nocivo, como se varrer os problemas para debaixo do tapete nos livrasse das conseqüências.

Espero que a nova audiência do Senado seja de interesse da comunidade e solidificada no firme propósito de serem buscadas soluções - e não pautada em discursos inócuos e inconsistentes.

Espero que os representantes locais escancarem os problemas e exijam um diagnóstico profundo da situação local. Desejo mesmo que eles cobrem do governo federal o ressarcimento dos danos - morais e econômicos - que as decisões monocráticas, adotadas pelos seus representantes na fronteira, têm nos provocado.

Se a proposta do requerimento é ouvir da própria comunidade o que está acontecendo, para, a partir daí, desenhar possíveis soluções, esqueçam, senhores representantes políticos e empresariais, os projetos pessoais e a defesa corporativa de interesses. Pensem na coletividade!

Vamos deixar de lado o discurso escrito para causar boa impressão e falar em bom português. Dizer que precisamos de medidas emergenciais para não agravar, ainda mais, o caos social.

Desnudar a violência, o desemprego e o empobrecimento local. Falar com clareza das atrocidades cometidas em operações de repressão, e sem qualquer compensação social. Dizer que Foz do Iguaçu não merece pagar o preço da omissão do Estado brasileiro em políticas para a fronteira durante décadas. Nada de maquiagem. Nada de passeio por obras ou filminhos com programas e projetos distantes da realização e sem a menor possibilidade de agregar valores para contribuir na solução dos nossos problemas mais urgentes.

Temos de mostrar a carência de investimentos públicos, propor ações que o governo federal deve desenvolver, imediatamente, para mudar nossa realidade, em áreas como a comercial e turística.

Nunca se apresentou um projeto para a reconversão econômica da cidade - algumas entidades apenas apoiaram ações intempestivas direcionadas aos interesses de uma minoria à custa de destruição da economia local. Não temos e jamais tivemos um projeto de reconstrução. Se necessário, nessa audiência pública, deve-se implorar por apoio para que esse plano seja elaborado.

Se for preciso, deve-se gritar para demonstrar que não suportamos mais a opressão e a pressão. Reclamar do remédio receitado que está nos levando à morte, pois foi prescrito sem diagnóstico por pessoas de competência discutível, que se supõem investidas de poder e donas de verdades incontestáveis.

Se for dita, inegavelmente a verdade vai prevalecer sobre todas as coisas.

FOUAD MOHAMAD FAKIH é empresário. E-mail: fouad@fouadcenter.com.br.