Título: China avança para o modelo capitalista
Autor: Scofield Jr., Gilberto
Fonte: O Globo, 17/03/2007, O Mundo, p. 39

Aprovação da Lei da Propriedade marca vitória de reformadores na opção pelo socialismo de mercado.

OCongresso Nacional do Povo (CNP) da China aprovou ontem a lei que regulamenta o conceito de propriedade privada no país - a chamada Lei da Propriedade -, considerada um marco histórico na trajetória da China rumo a um sistema econômico capitalista com forte presença do Estado, o que é chamado aqui de "socialismo de mercado com características chinesas". O conceito de propriedade privada havia sido abolido com a Revolução Comunista de 1949 e só foi reintroduzido na China pela emenda constitucional de 1982, mas o texto precisava de regulamentação.

O objetivo da lei, segundo o governo, é manter o estímulo aos investidores privados que injetam todos os anos mais de US$100 bilhões na economia. E acabar com a ansiedade entre a classe média e alta emergente do país, temerosa de que uma onda conservadora no poder possa confiscar os recém-adquiridos apartamentos e carros de luxo. Seu parágrafo principal, segundo a agência Xinhua, estipula: "A propriedade do Estado, da coletividade, do indivíduo e de outras partes é objeto de proteção legal, que não pode ser infringida por nenhum indivíduo ou instituição."

- A lei mantém o espírito de reforma e abertura da economia chinesa e dá proteção à propriedade privada sem deixar de resguardar os direitos do Estado - disse Wang Shengming, vice-diretor da Comissão Legislativa do CNP. O texto, ainda não publicado, mantém, segundo o governo, o Estado como "força de liderança" na condução da economia.

Apesar disso, para muitos, não fazia mesmo sentido deixar a ameaça de um Estado que confisca pairando sobre a China, um país onde 70% do Produto Interno Bruto (PIB, a soma das riquezas produzidas num país) já são gerados pelo setor privado, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Yin Tian, prestigiado professor de Legislação da Universidade de Pequim, elogiou o caráter institucional da lei:

- Com todos possuindo os mesmos direitos, o governo reforça o princípio da competição justa e garante a sobrevivência dos melhores. Estes são os princípios básicos da economia socialista de mercado chinesa.

A batalha pela aprovação da lei não foi fácil e o texto sofreu forte oposição da ala mais conservadora do Partido Comunista da China (PCC), que teme um enfraquecimento do Estado e de seu poder interventor. Tanto é que o projeto levou 14 anos sendo discutido. Ajudou na aprovação da lei a decisão do PCC, tomada em 2002, de permitir a filiação de empresários ao partido. O rosto autoritário e centralizador dos conservadores comunistas foi rejuvenescido com as idéias e a disposição de uma classe de empreendedores que a China não levava em consideração no processo de decisão do Estado.

Mas muitos analistas ainda estão céticos sobre o caráter de proteção da lei, especialmente no que se refere a um dos pontos de maior inquietação na China hoje: o confisco ilegal de terras dos camponeses feito por governos locais para a construção de shopping centers e condomínios para ricos. A nova lei poderia evitar a desapropriação ou elevar as indenizações pagas pelas terras, diminuindo a insatisfação no campo. Segundo analistas, tudo depende de como o governo e a Justiça vão interpretar a nova lei. A maneira como a mídia chinesa e as próprias autoridades têm evitado discuti-la representa uma preocupação a mais. O próprio premier Wen Jiabao encerrou o Congresso com uma longa entrevista, em que o projeto não foi mencionado, a não ser indiretamente, quando afirmou que o governo deve respeitar os direitos da população.

Os integrantes da nova classe média e alta das metrópoles querem garantias para os bens conquistados ao longo da vida e que serão deixados para seus filhos - únicos.

Neste aspecto, os desdobramentos jurídicos da nova lei são enormes e ainda uma incógnita. Nas grandes cidades chinesas, por exemplo, ninguém é dono de imóveis, mas pode comprar o direito de uso do apartamento, da sala ou da terra por 70 anos, renováveis. Mas, afinal, o direito de uso é um direito de propriedade?

A Lei de Propriedade entra em vigor em 1º de outubro e foi aprovada por 2.799 votos a favor, 52 contra e 37 abstenções.

Regra agora é imposto unificado para empresas

O Congresso chinês - a assembléia legislativa composta de cerca de três mil representantes das províncias ligados ao PCC e que se reúne uma vez por ano - também aprovou a lei que unifica em 25% a alíquota do imposto de renda cobrado sobre o lucro das empresas chinesas e estrangeiras. Antes, as empresas chinesas pagavam 33% de imposto enquanto uma série de benefícios dados às empresas estrangeiras reduziam a taxação para 15%.

Não se espera uma redução no fluxo de investimentos estrangeiros por causa disso, garante o governo de Pequim. Primeiro, porque esta transição para a nova taxa será feita gradualmente e segundo, porque os lucros obtidos com as atividades das empresas estrangeiras na China mais que compensam a alta da alíquota.