Título: Pena máxima
Autor: Rosenfield, Denis, Lerrer
Fonte: O Globo, 19/03/2007, Opinião, p. 7

Um país é mais ou menos civilizado pelas formas de criminalidade que povoam o seu dia-a-dia. Querer deslocar a questão para a discussão sobre a pena máxima, como se ela fosse o critério civilizatório, significa confundir a causa com o efeito. Quando um país vive cotidianamente a barbárie, é porque há algo doente em seu seio. Os olhos já não vêem o que a alma não pode suportar, salvo nos momentos de profunda indignação. A barbárie não consiste na ação do Estado ao retirar do convívio humano indivíduos que não devem - nem podem - nele permanecer, mas na simples existência de atos de violência inaudita que permanecem sem punição. A justificativa de que os direitos humanos são, assim, preservados, reside numa grave distorção dos fatos, pois as vítimas, os mortos e os seus familiares e amigos são colocados na condição de não-humanos, enquanto os criminosos são objetos de explicações compreensivas. As "boas almas" demonstram uma profunda má-fé.

A pena máxima, seja sob a forma da pena de morte ou da prisão perpétua, é uma medida que pode ser adotada pelo Estado visando a retirar de circulação indivíduos radicalmente inaptos para a vida normal. Há pessoas cujos atos, na barbárie extrema, revelam uma natureza que não pode ser regenerada. São pessoas que possuem uma propensão - freqüentemente calculada - para atos maldosos, para atos de eliminação e tortura do próximo, que não são passíveis de reeducação. A História exibe exemplos deste tipo à profusão - nazistas e stalinistas sendo casos particularmente notórios. Surge uma inadequação total entre medidas ditas de caráter reeducativo e atos criminosos, que não se encaixam, por sua natureza, com essa forma de intervenção, dita progressista.

Pretender igualar a ação do Estado a atos criminosos - como se fossem ambos da mesma espécie - equivale a fazer uma confusão elementar entre a natureza do Estado e atos que procuram romper com os laços de sociabilidade. A instituição estatal tem como função primeira a segurança pública, a conservação da vida, dos bens e das propriedades dos seus cidadãos. Ela se dá os meios para a realização de sua finalidade, dotando-se de corpos policiais e de uma estrutura jurídica. Por sua vez, o crime consiste na negação da ordem estatal e no rompimento dos nexos sociais. Se o Estado não agisse, ele estaria anuindo com a violência, dando livre curso a ela. Se reage, é porque cumpre responsavelmente com suas funções.

Repressão não é nome feio. Significa a ação coercitiva do Estado na preservação da ordem pública. A questão reside num perverso jogo de vocabulário. Considerando a ressonância valorativamente negativa da palavra repressão entre nós, por estar associada à perseguição de opositores durante o regime militar, os defensores de tais posições procuram levar o Estado à inação, como se toda tarefa coercitiva fosse repressiva do ponto de vista político. Desapareceu, por exemplo, do vocabulário cotidiano a palavra coerção estatal ou mesmo a de defesa da paz pública, em proveito de uma crítica a priori da repressão (política) estatal. Aparece, então, uma estranha compaixão pelos criminosos em nome de uma luta contra a repressão. Os termos da questão são tão mal colocados que os seus defensores nem se atrevem a submeter à população um referendo sobre a pena máxima, pois sabem que o perderiam.

Pobre não é criminoso. Rico tampouco. Criminosos são os que perturbam a paz pública, indivíduos que não respeitam a lei nem o próximo. Jornais mostram pessoas de baixa extração social que devolvem dinheiro achado na rua, pessoas que possuem o sentido do respeito da propriedade dos outros. Significa um profundo desrespeito a essas pessoas considerá-las potencialmente criminosas. Pessoas pobres são muitas vezes mais responsáveis por suas dívidas que pessoas mais aquinhoadas socialmente. Isto não quer dizer, evidentemente, que o Estado não deva melhorar as condições sociais dos mais carentes, mediante iniciativas na área da educação, da saúde e, sobretudo, do emprego e da aquisição da propriedade. Pessoas com a estima adquirida pelo trabalho são capazes de melhor resistir aos falsos encantos do crime organizado. A impunidade não pode ser tolerada. Por suas portas, a violência entra e se avoluma, podendo se tornar incontrolável.

DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.