Título: Escrevam, reclamem!
Autor: Batista, Paulo Nogueira
Fonte: O Globo, 24/03/2007, Opinião, p. 7

Estou mesmo de mudança para os Estados Unidos. Em eleição concluída na terça-feira passada, todos os países do nosso grupo no Fundo Monetário Internacional aceitaram o meu nome, indicado pelo ministro da Fazenda do Brasil. Dentro de mais ou menos um mês, estarei residindo em Washington e representando, na diretoria-executiva do FMI, o Brasil, quatro outros países sul-americanos (Colômbia, Equador, Guiana e Suriname), três caribenhos (Haiti, República Dominicana e Trinidad & Tobago) e um centro-americano (Panamá).

Brasileiro pode viajar? Nelson Rodrigues sustentava que não. Realmente, a nossa fragilidade psicológica chega a ser comovente. Ponham um inglês na Lua, dizia Nelson, e ele imediatamente finca a "Union Jack" e anexa a Lua ao Império Britânico. Já o subdesenvolvido faz exatamente o contrário. Quando chega aos Estados Unidos ou à Europa (principalmente aos Estados Unidos), qual é a primeira providência do brasileiro? Declara-se colônia, automaticamente!

Ao longo da vida, tenho constatado repetidamente que essa caracterização rodrigueana, que data dos anos 60, resistiu intocada ao tempo. A permanência no exterior, em universidades, bancos privados ou organismos multilaterais, produz uma descaracterização violenta do brasileiro, que volta ao país (quando volta) como súdito leal das potências hegemônicas. Demora muito tempo, às vezes décadas, a readquirir os nossos valores, hábitos e cacoetes. A maioria nunca supera, e nem tenta superar, as marcas da recolonização mental e emocional.

Evidentemente, não somos um caso isolado. O processo de catequização é um componente crucial das estruturas internacionais de poder. As nações hegemônicas exercem o poder não apenas nos planos econômico, político e militar, mas também no terreno das idéias, da ideologia, das imagens, da cultura. Não há hegemonia que possa prescindir do que os americanos chamam de "soft power". Parte importante desse "soft power" é o treinamento - adestramento talvez seja a palavra mais adequada - das elites dos países em desenvolvimento nas universidades dos países centrais, nas suas instituições financeiras e em organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial.

É uma antiga tradição imperial. Os romanos, por exemplo, transplantavam os filhos dos líderes das tribos germânicas para Roma, onde eram devidamente aculturados. Retornavam à sua terra natal na condição de integrantes convictos e assimilados do Império Romano.

O treinamento ou adestramento das elites periféricas tem uma dupla dimensão. Por um lado, envolve a absorção, obviamente positiva, de conhecimentos, técnicas e experiência internacional. Simultaneamente, entretanto, inculcam-se sentimentos, valores e padrões de comportamento.

Forma-se, desse modo, uma "tecnocracia apátrida", para usar uma expressão de Charles de Gaulle. Uma tecnocracia mais identificada com as nações adiantadas do que com seus países de origem. A preservação do atraso e da dependência passa a ser articulada por dentro, sem sotaque físico, porém com um tremendo sotaque espiritual, diria Nelson Rodrigues. Essa dominação indireta, que se faz por meio de prepostos locais, é menos transparente e, assim, mais eficiente do que os métodos coloniais tradicionais.

Os economistas têm dado contribuição especialmente importante. Em muitos países periféricos, os cargos mais importantes e as alavancas decisórias nos Ministérios das Finanças, do Planejamento e nos bancos centrais acabam nas mãos de uma rede de economistas e outros profissionais que têm "trânsito em Washington", mas pouca identificação real com as nações que supostamente governam e representam. É o caminho para perpetuar a dependência e o subdesenvolvimento.

Vou continuar escrevendo esta coluna lá de Washington. É uma forma de cultivar e reforçar os meus laços com o Brasil.

Ajude-me, leitor. Se constatar sintomas de assimilação, catequização ou aculturamento, escreva, reclame, patrulhe!

PAULO NOGUEIRA BATISTA é economista. E-mail: pnbjr@attglobal.net.