Título: Primeiro passo
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 25/03/2007, Economia, p. 34

A melhor notícia dos últimos anos agora sairá em livro do Ipea: a queda da desigualdade brasileira. Ela caiu forte de 2001 a 2005, e é a menor em 30 anos. Nos cinco anos, caiu 20% a razão entre a renda dos 20% mais ricos comparada com a dos 20% mais pobres. Mesmo assim, 90% dos países do mundo têm renda menos concentrada que a nossa. A má notícia: o ritmo da queda está diminuindo.

A queda da desigualdade, um problema tão antigo e cristalizado, foi uma novidade que provocou vários estudos. Eles estão todos no livro organizado pelos economistas Ricardo Paes de Barros, Miguel Foguel e Gabriel Ulyssea. Os autores dos textos dissecam os diversos lados do fenômeno com a intenção de medir e entender as políticas que levaram ao objetivo que o Brasil busca há tanto tempo.

A desigualdade tem várias medidas. Os dados brasileiros foram filtrados por todas elas, e o resultado foi o mesmo: houve forte declínio a partir de 2001. De lá para cá, a queda do índice de desigualdade, como o Gini, por exemplo, foi de quase 5%. Parece pouco? É o melhor resultado desde a queda que houve na década de 60. Numa lista de 74 países que têm dados da última década, menos de um quarto teve desempenho melhor que o Brasil.

Desigualdade é um problema tinhoso. Às vezes, cai porque o país inteiro empobrece. Uma recessão forte produz o efeito, como no Plano Collor. Não é melhora da vida dos pobres. Às vezes, a pobreza diminui e a desigualdade até aumenta. No nosso caso, os pesquisadores do Ipea constataram que houve também ganhos de renda dos mais pobres. É uma dupla boa notícia, e aconteceu apesar de ser um momento de baixo crescimento. A tendência da queda começa no Plano Real, mas se acentuou a partir de 2001.

Os coordenadores do livro, autores de alguns trabalhos, são de gerações diferentes. Ricardo Paes de Barros é o veterano, formador de quadros brasileiros na análise cuidadosa, quantitativa e acurada das políticas públicas. Ele é quase lenda, e seu nome virou sigla entre os especialistas: é o PB. Gabriel, o mais novo, tem menos de 30 anos. O livro serve também para exibir a lista de vários pesquisadores brasileiros nesta área que tem sido um dos nossos desafios: combater a desigualdade com políticas eficientes. O fenômeno é complexo, e é melhor tratá-lo com técnica do que com retórica; com análise de processo do que como torcida em favor de um governo. É o que os 22 autores e organizadores fazem.

"Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente" é um livro para circular entre estudiosos e interessados; não é candidato a best-seller. Mas é indispensável para quem quer entender a natureza do fenômeno e responder a pergunta: onde foi que acertamos em área em que temos errado tão reiteradamente? O livro começa com a publicação de uma nota técnica do Ipea; os estudos se seguem esmiuçando o relatório e testando hipóteses. A conclusão dos vários testes: eles se dizem 99% certos de que a desigualdade está mesmo em queda.

Estamos muito longe da média mundial, ou seja, ainda somos muito desiguais, mas o importante é estudar a magnitude e as razões dos "nítidos e robustos sinais de queda dos últimos anos".

Principalmente as razões, porque elas dão pistas do que fazer adiante. Os pesquisadores descobriram que não há causa que, sozinha, explique o fenômeno, mas existem razões mais relevantes que outras. As três mais determinantes: força de trabalho mais qualificada pelo avanço da educação; redução das desigualdades dentro do mercado de trabalho; uma rede de proteção mais ampla, com o Bolsa Família. Ter mais de uma causa significa que a boa notícia é mais sustentável.

Mesmo assim, há um problema relevante: no Brasil, pesquisas diferentes mostram valores diferentes para a renda das famílias. A POF, uma pesquisa de consumo, encontra uma renda 26% maior que a encontrada pela Pnad, que também é diferente do que se registra no Sistema de Contas Nacionais. Essa discrepância é objeto de um dos estudos. O dado é relevante, tratei dessas discrepâncias em coluna recente, mas não é importante para a questão da desigualdade. O estudo mostra que a renda está subestimada pela Pnad - tanto entre os mais ricos quanto entre os mais pobres -, mas isso não altera os dados da desigualdade. De qualquer maneira, indica uma inquietante questão que outros pesquisadores têm estudado: as contradições entre renda e consumo no Brasil.

O que o livro permite é comemorar, enfim, numa área em que sempre tivemos - e ainda temos - razões para nos envergonhar. Mas os autores alertam: "Esse é o primeiro passo de uma longa caminhada." A chave do sucesso é continuar fazendo o que tem dado certo. É preciso insistir na ampliação da educação e aumentar a oferta de mão-de-obra qualificada. Mas o mercado de trabalho cria desigualdades quando remunera diferentemente pessoas com mesmo nível de qualificação. A razão dessa diferença são as discriminações de gênero e raça. Combatê-la é reduzir a desigualdade. Programas como o Bolsa Família ajudaram a produzir o fenômeno.

As transferências de renda sempre foram altas no Brasil, mas a novidade agora é que elas são focadas nos mais pobres, com o Bolsa Família. Herdeira do Bolsa Escola e ampliada, a política gera muitas controvérsias. Os dados mostram que ela explica parte da redução da desigualdade.

O Brasil tem sido um país emblemático de desigualdade. Encontrar os caminhos do acerto e persistir neles é realizar um velho sonho. Sonho que ficou um pouco mais perto nos últimos anos.