Título: Dia histórico na Irlanda do Norte
Autor: Duarte, Fernando
Fonte: O Globo, 27/03/2007, O Mundo, p. 23

Protestantes unionistas e católicos republicanos anunciam governo de coalizão em Belfast.

Não houve sequer uma tentativa de aperto de mão diante da câmeras, mas ainda assim a Irlanda do Norte viveu ontem um dia histórico - com o anúncio de que as duas correntes político-religiosas com uma história de séculos de antagonismo, e atualmente lideradas por grandes inimigos, aceitaram sentar-se à mesa de negociações. Ian Paisley, o pastor protestante defensor ferrenho da permanência norte-irlandesa no Reino Unido, e Gerry Adams, líder da legenda republicana e majoritariamente católica Sinn Fein, anunciaram a formação de um governo de coalizão.

Ficou no ar também a promessa de dias menos conturbados para um país marcado pela intolerância religiosa e o terrorismo, que deixou pelo menos 3.700 mortos nas décadas de 70, 80 e 90 e que, mesmo em tempos menos violentos, parecia fadado a empacar. O Parlamento da Irlanda do Norte, por exemplo, está dissolvido há mais de três anos, em meio às trocas de acusações entre as partes envolvidas. Um impasse ainda maior por conta do resultado das eleições locais de novembro de 2003 e de fevereiro de 2007, em que o Partido Democrático Unionista (DUP), presidido por Paisley, e o Sinn Fein saíram vencedores.

Dois partidos tão diferentes como água e vinho. O DUP se recusou a ratificar o acordo de paz da Sexta-Feira Santa que, em 1998, reduziu drasticamente a violência paramilitar na Irlanda do Norte, sobretudo porque sempre se recusou a aceitar o Sinn Fein, o braço político do temido Exército Republicano Irlandês (IRA). A relutância não diminuiu quando, no ano passado, o grupo anunciou sua renúncia à luta armada e o compromisso com o processo de paz, mas as convicções do pastor tiveram que ser postas de lado diante de um ultimato do governo Tony Blair - para que uma solução para o impasse fosse apresentada até ontem, sob pena de Londres voltar a ter comando total sobre os rumos norte-irlandeses. Especialmente porque Blair, prestes a deixar o governo, tem entre o que o deixa orgulhoso o fato de ter dado a Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte mais autonomia.

Coalizão entra em vigor em 8 de maio

E nada simboliza mais a mudança de atitude de Paisley como o anúncio de que, no governo de coalizão, que terá início em 8 de maio, o reverendo terá como vice ninguém menos que o polêmico Martin McGuinness, um republicano ex-integrante do IRA. O contragosto, no entanto, foi visível no Palácio de Stormont, em Belfast: Paisley e Adams sequer trocaram olhares e se resumiram a ler pronunciamentos.

- Não podemos deixar que ressentimentos pelas tragédias e horrores do passado sejam uma barreira para a criação de um futuro melhor e mais estável para nossas crianças. Estou comprometido a governar não apenas para quem votou no DUP, mas para todo o povo da Irlanda do Norte.

Adams também adotou um tom conciliador, mas deixou claro que o acordo não muda a determinação fundamental do Sinn Fein e de outros republicanos: no discurso, referiu-se à Irlanda do Norte como Irlanda, numa alusão ao desejo de reintegração com a próspera República da Irlanda, independente do Reino Unido em 1922.

- Temos uma nova esperança para o futuro, ainda que tenhamos de encarar muitos desafios e dificuldades. Devemos uma reconciliação nacional aos que sofreram no caminho deste processo de paz - disse Adams.

Ao menos não houve troca de farpas ou as exigências que vinham travando as tentativas de negociação coordenadas por Dublin e Londres. Não por acaso, Blair e o primeiro-ministro irlandês, Bertie Ahern, saudaram efusivamente o anúncio de ontem. Especialmente o premier britânico, que enfrenta dificuldades em seu país por causa do desastre iraquiano:

- Tudo o que fizemos nos últimos 10 anos foi uma preparação para este momento. É um dia histórico não só para a Irlanda do Norte, mas também para todo o Reino Unido e a Irlanda.

O caminho para a estabilização ainda será tortuoso, especialmente porque há questões polêmicas como a nomeação do Gabinete do governo, que não poderá ser monopolizada pelo DUP ou o Sinn Fein. Republicanos e unionistas deverão assumir posições opostas na hora de debater assuntos como a preservação do idioma irlandês, por exemplo. E muitos adversários do Sinn Fein esperam ver na prática o compromisso de apoiar o trabalho da polícia norte-irlandesa, um tradicional adversário do IRA.