Título: A guerra do etanol
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 30/03/2007, O País, p. 4

Às vésperas da visita do presidente Lula a Washington, e ecoando as críticas que já haviam sido feitas pelo venezuelano Hugo Chávez, Fidel Castro reapareceu politicamente com um artigo publicado no "Granma", o jornal oficial do Partido Comunista Cubano, criticando o empenho da política externa americana na produção e distribuição do etanol como alternativa ao petróleo. Fidel não se refere ao Brasil em nenhum momento de seu artigo, mas fica evidente que a oportunidade da publicação tem a ver com a reaproximação do governo brasileiro com os Estados Unidos.

Há questões de geopolítica nessa reação de Venezuela e Cuba, mas também questões puramente econômicas. O professor de história contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira ressalta que a emergência do etanol como combustível alternativo é um problema para os países que, como Venezuela e Bolívia, utilizam seus recursos naturais como fatores de pressão política. A médio e longo prazos, os dois países terão sua importância estratégica reduzida: "O que será da Bolívia sem gás, ou concorrendo com fontes alternativas?", questiona Teixeira.

É nesse contexto, também, que deve ser examinada a iniciativa de Hugo Chávez de lançar a Opep do gás, a ser anunciada dia 9 de abril em Doha, durante o Fórum dos Países Produtores de Gás, e que terá como membros fundadores a Venezuela, Argélia, Qatar, Irã e Rússia. A escolha dos cinco países para serem os membros fundadores do cartel tem como lógica o fato de serem atualmente grandes produtores de gás natural, e de terem projetos para a construção de fábricas de liquefação.

É evidente que o Chávez aproveitará a oportunidade para mostrar a sua liderança política na América do Sul, e certamente convidará a Bolívia para fazer parte do cartel. As fábricas de liquefação, lembra Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE), transformam o gás em líquido e possibilitam o transporte em navio, fazendo com que o gás vire uma commodity, fortalecendo a posição da Bolívia. Mas permitem também ao Irã vender gás para o Brasil, o que já está em negociação. A Petrobras já anunciou a construção de duas fábricas de regaseificação no Rio de Janeiro e no Ceará.

Já o professor Francisco Carlos Teixeira lembra que o Irã, bloqueado pelos Estados Unidos e pela União Européia, está em busca de mercados alternativos. E o Brasil busca relativizar a relevância da Bolívia no fornecimento de gás, comprando liquefeito no norte da África e abrindo novas frentes de energia alternativa.

Adriano Pires ressalta que "dentro das características da indústria do gás, o Brasil, em particular com a Bolívia, que teria uma grande dificuldade de construir uma planta de liquefação pelo fato de não ter acesso ao mar, tem uma posição de força em razão de ser o mercado na América do Sul com maior potencial de crescimento, tendo nesse caso uma posição de quase monopsônio", que é a situação em que existem vários vendedores de uma matéria-prima e apenas um comprador.

O professor Francisco Carlos Teixeira lembra que somos um excelente mercado "e qualquer um que queira pensar em energia deve levar o Brasil em conta, devido ao tamanho do mercado, à tecnologia, à capacidade de produção".

Voltando ao etanol, Teixeira lembra que o acordo Brasil/EUA prevê o desenvolvimento de usinas e de plantações de cana-de-açúcar na América Central, o que será um baque forte na economia da Ilha de Fidel se Cuba permanecer nessa posição ideológica de condenar "a substituição de comida por combustível".

Por todas essas razões, de estratégia geopolítica mas também econômica, o etanol não interessa a ninguém na Alba, a alternativa de integração bolivariana imaginada por Chávez para se contrapor à Alca, e que, por enquanto, reúne apenas Cuba e Bolívia.

O biocombustível alternativo que tem no Brasil a liderança produtiva e tecnológica mundial, mostra-se, segundo Teixeira, "uma ameaça contra a única arma que possuem para desempenhar exageradamente um papel de global players".

Adriano Pires, da CBIE, introduz ainda uma possibilidade que está nos cálculos dos estrategistas do Departamento de Estado dos Estados Unidos como uma saída para a transição democrática pacífica após a morte de Fidel, que parecia iminente quando foi feito esse planejamento: Cuba poderá ser um grande produtor de etanol para o mercado americano.

Para Pires, o Brasil tem uma posição muito confortável no que se refere à oferta de energia e não precisa se preocupar com essas escaramuças. "Somos auto-suficientes em petróleo, temos um dos maiores mananciais hídricos do mundo, temos vantagens comparativas incontestáveis no que se refere à produção de biocombustíveis (terra, água e tecnologia). Temos sol (solar) e uma costa onde podemos construir parques eólicos". O que falta, segundo ele, são "políticas públicas com menos ideologia, para que possamos construir marcos regulatórios capazes de atrair investimentos privados."

Francisco Carlos Teixeira acrescenta a essas alternativas a energia nuclear, que voltou a ser uma opção também na União Européia. Ele acha que dentro de oito a dez anos teremos uma matriz energética à prova de impactos externos, e muito diversificada.

"O problema são os dias de hoje, quando a Bolívia tem trunfos", adverte Teixeira, como demonstrado nos recentes episódios de reajuste de preços, lembrando especialmente o que chama de "chantagem sobre Cuiabá", quando o fornecimento de gás ficou ameaçado pela Bolívia e o preço teve que ser remarcado.