Título: Coelhos da cartola
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 30/03/2007, Economia, p. 26

Da noite para o dia, o Brasil atingiu a memorável marca de US$1 trilhão de PIB e, subitamente, ficamos mais ricos, pelo menos na estatística. Isso aumentou o risco da complacência do governo com os erros, os problemas e os atrasos do país. Foi um ajuste metodológico necessário, mas o risco é alimentar a idéia de que está tudo bem.

Não está. O desemprego aumentou, como previsto; o consumidor está menos confiante, portanto menos propenso ao consumo. Além disso, parte desse aumento do PIB é elevação dos gastos do governo, que antes não era vista com precisão. Agora a medida é mais precisa. Isso mostrou o que todos já sabiam.

O risco é que o mercado parece sancionar o ambiente de imobilismo. Hoje as avaliações de risco estão mais contábeis. Os que antes pediam reformas agora querem apenas que haja queda da relação dívida/PIB.

Ela vai cair por vários motivos: o PIB foi revisto para cima; o dólar está baixo; pela acumulação das reservas, pois o que se olha é a dívida líquida, ou seja, descontadas as reservas. Os juros em queda vão tornar mais fácil essa redução da dívida. Daqui a pouco, ficará até difícil não dar novos upgrades ao Brasil.

Tudo isso é ótimo e tem efeito concreto na redução do custo de captação externa, que fica mais baixo. A queda do risco-país cria mais espaço para caírem os juros internos, provocando toda uma baixa no custo de capital brasileiro. O impacto positivo será sentido no setor privado e no setor público.

O risco é olhar esses indicadores e achar que aqueles velhos problemas já estão contornados. Para que discutir formas de reduzir os impostos, se a carga tributária como proporção do PIB até caiu na nova conta? Aliás, por que não aumentar os gastos? O superávit primário já seria, na prática, menor com o PPI, agora pode ficar relativamente menor, já que o PIB subiu.

O Ministério da Saúde, que tem a maior parcela do orçamento e a vantagem de correção automática dos seus gastos em qualquer conjuntura econômica ou orçamentária, já reclamou: se o PIB subiu, sua parcela nos gastos gerais, que é sempre uma fração do PIB, tem que crescer, ficou "defasada".

A Previdência, que precisa ser revista por irrecorríveis razões demográficas, foi somente recalculada sob novas bases e, milagrosamente, o déficit encolheu. Com o novo PIB, ficará ainda menor. Então não há reforma a se fazer. A revisão da metodologia do PIB foi feita de forma séria. Já o milagre do sumiço do déficit da Previdência é apenas coelho tirado da cartola. "E não me falem mais de déficit", determinou o presidente aos jornalistas. Pronto, o problema sumiu.

O presidente Lula afirma ter tido as melhores condições do mundo para montar seu Ministério e acaba de apresentá-lo: tem nomes velhos em lugares velhos, nomes velhos em novos lugares, curingas que podem ocupar qualquer ministério e a criação de secretarias para "acomodar" os recém-chegados na coalizão. Se é isso que o presidente consegue fazer quando lhe dão condições ideais, imagina o que faria se não as tivesse!

Num país que vive um colapso logístico, o presidente acha que pode tirar portos e aeroportos para "acomodar" alguém. Depois de dar o Ministério da Integração para o notório Geddel Vieira Lima, tem que compensar o PSB com uma parte do Ministério dos Transportes. Logística é visão integrada. No Brasil, vai ser dividida para acomodar, da mesma forma que se dividiu a regulação, que têm pedaços de um todo.

Cinco meses depois de reeleito, o presidente Lula, que na campanha pedia que o deixassem trabalhar, conseguiu montar um Ministério que está longe de ser a escalação de um time para entrar em campo imediatamente e virar o jogo. E é com espanto que se lê uma entrevista, como a dada ontem pelo ministro do Trabalho, Carlos Lupi, feliz com sua chance de fatiar as secretarias regionais do trabalho para "acomodar" seus muitos aliados.

Revisões estatísticas, como as do PIB brasileiro, deveriam ser vistas apenas como estatísticas, mas estão sendo usadas para esconder que o ajuste fiscal feito nos últimos anos foi com aumento de impostos, e não com redução de despesas; o colapso logístico que afeta o transporte aéreo espalha desconforto, prejuízo e ineficiência, mas agora vai terminar porque já há dia e hora determinados pelo presidente para acabar. Pena que ele esqueceu de dizer o ano! A distribuição de cargos, a montagem da aliança usaram os mesmos perigosos critérios que nos levaram à crise de 2005. O Brasil, mesmo com o PIB revisto, cresce menos que a média mundial. O que houve agora no Congresso foi a exata repetição do troca-troca para partidos da base aliada. Em 2003, os acolhedores foram o PL e o PTB. Desta vez, foi o PR, que é o PL com novo nome. Agora o país sonha com uma norma disciplinadora do TSE. Seria mesmo bom se fosse aprovada a nova interpretação. Mas melhor seria encontrar os mecanismos dentro do Congresso para varrer os maus hábitos políticos, antes que o país seja sacudido por um novo mensalão.

Os problemas brasileiros não desapareceram com a mudança da metodologia, que tanta alegria provocou em Brasília com o pibão de US$1 trilhão. Problemas não somem, são enfrentados.