Título: Cheques-Cidadão voadores
Autor: Berta, Ruben
Fonte: O Globo, 02/04/2007, Rio, p. 8

Governo vai cancelar programa assistencial que tem 9.898 beneficiários desaparecidos.

Com o seu fim anunciado para o início de maio, o programa Cheque-Cidadão - principal projeto assistencial criado pelo casal Garotinho - está sob suspeita de fraude. Das 103.437 pessoas que receberam o benefício de R$100 em dezembro, último mês de Rosinha Garotinho à frente do estado, 9.898 (9,5%) simplesmente desapareceram este ano. Destas, 5.425 (5,2%) já foram cortadas das folhas de pagamento de janeiro e fevereiro pelo atual governo. A Secretaria estadual de Assistência Social e Direitos Humanos identificou casos de uma mesma família que recebia vários cheques e até de quem havia morrido há três anos e continuava recebendo.

- O que detectamos é que havia uma falta total de controle, transparência e de critério. Não temos o objetivo de investigar o Cheque-Cidadão, mas queremos beneficiar as pessoas que realmente estão em situação de vulnerabilidade - afirmou a subsecretária estadual de Assistência Social e Descentralização da Gestão, Nelma de Azeredo.

As primeiras suspeitas da secretaria se voltaram contra 10.141 beneficiários que sequer tinham o número da identidade ou CPF cadastrado, mas recebiam o cheque. Destes, 4.716 atualizaram seus dados, ficando aptos a receber os R$100 mensais de janeiro e fevereiro. Os 5.425 restantes sumiram, indicando a possibilidade de fraude.

Beneficiário não vai buscar o dinheiro

Mas os problemas não param por aí. Outros 4.473 beneficiários (4,2%) que tinham os documentos cadastrados tiveram os R$200 de janeiro e fevereiro disponibilizados na Caixa, mas não compareceram para retirar o dinheiro. Até o fim de abril, esses depósitos serão cancelados. A principal hipótese levantada pela subsecretária Nelma de Azeredo é de que a maioria dessas pessoas poderia estar recebendo o cheque mesmo estando fora dos critérios de pobreza necessários para o enquadramento no programa.

- Antes, as pessoas simplesmente recebiam um cheque com um nome das mãos de uma pastor de uma igreja. Era um papel que não trazia qualquer dado, como o número da identidade, por exemplo. Qualquer um podia usá-lo --- completou Nelma de Azeredo.

Independentemente dos casos suspeitos, outra medida que já foi decidida pela Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos é a retirada da folha de pagamentos de março de 45% dos 88.823 beneficiários que sacaram os R$200 nos dois primeiros meses do ano. São 40.063 pessoas que ganhavam o Cheque-Cidadão e também o Bolsa Família, programa de transferência de renda do governo federal. Agora, eles receberão apenas o benefício da União.

Reunião discute mudança hoje

A expectativa do governo estadual é de completar a transição dos 48.760 restantes e extinguir o programa do casal Garotinho até maio. Mas a própria subsecretária Nelma de Azeredo admite que o estado ainda pode ter de pagar o Cheque-Cidadão por algum tempo a mais para que ninguém seja prejudicado. Hoje, deve acontecer uma reunião entre representantes do estado e do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, para definir alguns detalhes ainda pendentes na migração.

- Temos que buscar um equilíbrio entre as metas estabelecidas pela União para cada município e a quantidade de famílias que está recebendo o benefício - explica Nelma de Azeredo.

Os últimos dados de repasse do Bolsa Família mostram a necessidade desse equilíbrio no estado. Em Araruama, por exemplo, foram pagos 2.658 benefícios, bem abaixo da meta do ministério, de 4.001. Por outro lado, em Belford Roxo, foram 26.907 contemplados, contra uma meta do governo federal de 22.994.

A quantidade de benefícios estimada pela União foi baseada na Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad) de 2004 do IBGE. Mesmo com as distorções, no início de março foram pagos em todo o território fluminense 453.339, bem abaixo da meta geral da União para o Estado do Rio de Janeiro: 539.160.

Apesar de Nelma de Azeredo afirmar que a transição do Cheque-Cidadão para o Bolsa Família será tranqüila, o secretário municipal de Assistência Social, Marcelo Garcia, demonstrou bastante preocupação com o processo. Hoje, na capital, há 105.393 beneficiados pelo programa federal, abaixo da meta de 164.913.

- O estado está conduzindo este processo sem um pacto com os municípios e com o próprio ministério. Estou muito preocupado, pois acredito que a qualquer momento o problema vai estourar - disse Marcelo Garcia.

O programa federal de transferência de renda tem uma escala de pagamentos que vai de R$15 a R$95, conforme o nível de pobreza e o número de filhos em idade escolar de cada família. Já o Cheque-Cidadão concedia um benefício único de R$100 mensais. Para se enquadrar no projeto, era preciso ter filhos menores de 14 anos matriculados em escolas e a carteira de vacinação das crianças em dia.

Assim que a secretária estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, Benedita da Silva, anunciou o fim do Cheque-Cidadão, em janeiro, a ex-governadora Rosinha Garotinho reagiu, chamando a atitude de "amarga traição". Ela afirmou ainda que o governador Sérgio Cabral estaria começando uma gestão "tirando a comida da mesa dos pobres". Já o governador, por sua vez, respondeu que a questão não poderia se limitar a "uma disputa por slogan".

O Bolsa Família também esteve às voltas com outra polêmica este ano. No dia 18 de março, a subsecretária Nelma de Azeredo anunciou ao GLOBO a inclusão de parentes de menores infratores no programa de transferência de renda. A medida faz parte de um programa de assistência integral à família desses jovens para reinseri-los na sociedade. A atitude gerou críticas de pessoas que a consideraram um possível estímulo à criminalidade.

-------------------------------------------------------------------------------- Criado em 1999, primeiro ano do governo Anthony Garotinho, o Cheque-Cidadão foi parte do tripé de programas considerados assistencialistas - formado ainda pelo restaurante e pela farmácia populares - que marcou sua gestão, assim como a da ex-governadora Rosinha Matheus. Desde o início, o Cheque-Cidadão não escapou de polêmicas, como a concentração de cadastro em igrejas evangélicas.

O uso político do benefício, distribuído a pessoas com renda máxima de um terço do salário-mínimo, foi denunciado nas eleições de 2004, em municípios com candidatos à prefeitura apoiados pelo casal Garotinho. Em Campos, cadastros do cheque foram encontrados na sede do PMDB, na véspera do pleito, juntamente com R$318 mil apreendidos pela Justiça Eleitoral. O casal de ex-governadores chegou a ser tornado inelegível pela Justiça, numa decisão que depois foi revista.

Já em janeiro de 2006, o procurador eleitoral substituto, Rogério Nascimento, pediu à Polícia Federal do Rio a abertura de inquérito para investigar a suspeita de que Garotinho, então pré-candidato do PMDB a presidente da República, estaria fazendo campanha eleitoral disfarçada, em reuniões convocadas pelo governo a pretexto de falar sobre o programa Cheque-Cidadão.

Rogério esteve no Riachuelo Tênis Clube, na Zona Norte do Rio, onde aconteceria a sexta reunião com Garotinho convocada pela Secretaria estadual de Família e Assistência Social. Com a presença do procurador, antes mesmo que o ex-governador chegasse o evento foi encerrado.

O uso de verbas do Fundo Estadual de Saúde (FES) para custear o projeto também foi outro ponto polêmico. Em fevereiro de 2005, a Comissão de Saúde da Alerj acusou o governo de retirar R$481 milhões do FES para financiar programas como o Cheque-Cidadão e os restaurantes populares. Entre janeiro e maio de 2006, o governo de Rosinha Garotinho utilizou outros cerca de R$45 milhões da Saúde para pagar o Cheque-Cidadão e o café da manhã, de R$1, servido em estações de trem.