Título: O tranco e seus efeitos
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 05/04/2007, O Globo, p. 2

Os feriados da Páscoa chegam com o sobressalto da semana dissipado. Problemas há, mas o pior passou nesta crise militar gerada pela crise da aviação civil - apesar do ceticismo dos brasileiros quanto à normalidade do sistema, prometida pela Aeronáutica. Aos protagonistas do episódio, do presidente da República aos sargentos, cabe tirar lições do episódio. Nele, o presidente Lula executou uma de suas mais bruscas manobras de reposicionamento político. Mas também a Aeronáutica fez valer o ditado: "Porta arrombada, cadeado nela". Está fazendo agora tudo o que não fez em seis meses de crise no setor.

O débito, é bom dizer, é do comandante anterior, brigadeiro Bueno, e não de Juniti Saito, que entrou há pouco, pegou o temporal e está saindo fortalecido.

Entre sexta-feira à noite, quando o ministro Paulo Bernardo optou pela negociação com os controladores rebelados - depois de Saito admitir que a Aeronáutica não tinha plano B para o caso de uma greve geral após as prisões - e a tarde de terça-feira, quando o mesmo Paulo Bernardo avisou-os de que o acordo caducara (por força da reação dos militares), o presidente Lula executou sua mais brusca mudança de conduta no governo. Na véspera, em reunião com os comandantes das três armas, deve ter vivido um de seus momentos mais difíceis. Mais uma vez, ele explicitou sua criticada facilidade para mudar de posição, faltar a compromissos e abandonar aliados, em nome de seus objetivos políticos. Mas pode-se ver também nessa disposição para retroceder e trocar de caminho a abertura para corrigir erros em nome do interesse público - ainda que isso lhe custe danos à vaidade e à própria imagem.

É óbvio que Lula cometeu um grande equívoco, subestimando a questão hierárquica com uma visão sindical do problema. Não foi a primeira vez que se meteu em grandes confusões e teve que recuar. Em todas, faltou-lhe o aconselhamento correto de auxiliares mais próximos, em sua maioria muito reverentes, mais dispostos a concordar do que a ponderar. Foi o que ocorreu, por exemplo, na decisão de expulsar do Brasil o jornalista americano Larry Rohter. O então ministro Márcio Thomaz Bastos construiu o recuo. Mas foi desta vez que um ato seu resultou em maior ameaça à estabilidade de seu governo. Ele mesmo administrou o recuo, expondo o ministro Paulo Bernardo, que empenhara sua palavra aos controladores.

A capacidade de recuar, corrigir-se e mudar de rota para evitar o pior o diferencia de um personagem muito evocado estes dias, o ex-presidente João Goulart. Lula deixou os sargentos de lado para se realinhar à hierarquia militar, homenageando a disciplina com que transigira inicialmente, querendo ou não. Jango fez o contrário muitas vezes, e, de forma fatal, comparecendo ao famoso evento (também de sargentos) no Automóvel Club, um provocação à cúpula militar, que a seguir o derrubou. Fora avisado, mas não recuou.

Um alto oficial da Aeronáutica dizia ontem que todos ali ficaram muito chocados e revoltados mas compreenderam, a começar por Juniti Saito, que Lula "não agiu com dolo". Ou seja, intencionalmente. Isso não o redime, é claro, mas conhecer as sinuosidades de seu processo decisório é relevante para compreender seu governo.

Mas não foi Lula o único a corrigir-se neste episódio, depois do sobressalto. A ele bem se aplica também o ditado: "Porta arrombada, cadeado nela". Os controladores-sargentos agora se dão conta de que são militares e sujeitos a regras disciplinares próprias. Desligados da corporação, trabalhando nos Cindactas, parecem ter se esquecido disso. Acordaram até para o fato de que, com a desmilitarização do setor, perderiam regalias, como a moradia e o bom hospital militar.

A Aeronáutica agora tem um plano B. Garante que será capaz de mobilizar controladores substitutos no caso de uma outra (improvável) paralisação. Mas por que não fez isso antes, se há seis meses vêm ocorrendo operações padrão que foram ensaios de greve? Verdade que isso não é com Saito, mas com seu antecessor. Agora se sabe que pelo menos dois "problemas técnicos" foram atos de sabotagem: o estrago num equipamento de comunicação em Brasília, que necessitou de um técnico estrangeiro para ser consertado, e o problema de Cumbica, no equipamento de pouso guiado sob nevoeiro. Mas por que a Aeronáutica não investigou a suspeita de sabotagem, há tanto tempo mencionada?

Tudo aconteceu porque havia déficit de disciplina, de autoridade e de competência. Foi preciso um susto desses para tirar todos da letargia e do nevoeiro mental.