Título: Milicianos dividem o território conquistado
Autor: Ramalho, Sérgio
Fonte: O Globo, 08/04/2007, Rio, p. 19

Acordo define quem vai explorar o quê dentro da favela.

Um dos chefes da milícia que atua na Zona da Leopoldina, o sargento João*, tem mais de 20 anos de Polícia Militar. No segundo casamento, o policial, pai de três filhos, tem um discurso conservador, mas pontuado por contradições. Na opinião dele, a milícia presta um serviço às comunidades ao livrá-las do tráfico. O sargento, no entanto, se esquiva ao ser questionado sobre a cobrança de taxas a moradores e comerciantes.

¿ O movimento é uma forma de reação de policiais, desamparados pelo Estado, que vivem nessas áreas ¿ diz o sargento, que mora num condomínio de classe média, em Jacarepaguá.

Em seguida, nova contradição: João confirma ter participado da invasão à favela após os traficantes diminuírem o valor da propina.

João não fala sobre o número de PMs envolvidos nos grupos, mas assegura que maior parte está concentrada em unidades nas zonas Oeste e da Leopoldina, e na Baixada Fluminense.

Pai de três filhos, dois do primeiro casamento, João teme ver o filho mais velho, de 17 anos, envolvido com o tráfico. Mas também não quer vê-lo trilhando seu caminho na PM.

¿ Isso não é vida. A gente ganha uma miséria para levar tiro de bandido. Se não fizer bico, o policial não consegue sustentar a família. É por isso que tem PM explorando transporte alternativo, gatonet, segurança e taxa de gás ¿ diz.

A ladainha cai por terra quando João deixa o local do encontro num carro novo, cujo valor de mercado gira em torno de R$60 mil. Ao notar que o veículo despertou a atenção do repórter, o sargento dispara:

¿ Se esse negócio de milícia desse dinheiro, eu estaria de Audi.

Com dez anos a menos de PM, o cabo Antônio* também pontua as frases com reclamações sobre o salário. Diferentemente do sargento, faz questão de deixar a arma, uma pistola, exposta durante a entrevista. Ligado a uma milícia da Zona Oeste, o policial é mais expansivo ao falar sobre as atividades do grupo.

Antônio garante que o número de PMs envolvidos nas milícias equivale ao de um batalhão.

¿ No ataque à Cidade Alta (tentativa de invasão em fevereiro) eram mais de 300 homens, sem falar nos PMs do batalhão da área ¿ afirma.

Segundo o cabo, os policiais ligados às milícias atuam em conjunto quando os alvos são favelas grandes, como Cidade Alta, em Cordovil, e Cidade de Deus, em Jacarepaguá. Antônio revela que, mesmo antes da ocupação, as milícias fazem a ¿partilha da favela¿.

¿ É nessa hora que fica definido quem vai explorar o quê. Um grupo fica com o pedágio do transporte, outro com a taxa de gás, o gatonet e assim vai ¿ afirma o policial.

O cabo acrescenta que, em muitas comunidades, ex-integrantes do tráfico passam a trabalhar com as milícias.

¿ A gente só não aceita os que já mataram policiais. Esses vão para a vala ¿ afirma o cabo.

Com o tempo, os milicianos passam a explorar atividades incentivadas antes pelos traficantes. Caso dos bailes, como acontece, aos sábados na Favela Roquete Pinto. A diferença está na proibição da venda e uso de drogas. Em contrapartida, o comércio de bebidas é monopolizado pela milícia.

Além da organização de bailes, em algumas favelas, as milícias distribuem cestas básicas aos mais carentes. A medida, segundo os dois policiais, ¿comprova a preocupação social dos grupos¿. A benesse, contudo, é paga com parte dos lucros obtidos com a cobrança de taxas.

Por trás do assistencialismo, o interesse em conquistar a simpatia dos moradores e, com isso, aumentar os lucros do ¿negócio¿.

¿ Afinal, a gente também precisa pagar contas ¿ alega o cabo.

Questionados sobre a contradição entre o trabalho de um policial, que deve atuar dentro da lei, e a atividade como miliciano, os dois PMs reagem com desdém. Nesses territórios, eles são a lei.

* Nomes fictícios