Título: Nos trilhos do pó
Autor: Werneck, Antônio
Fonte: O Globo, 15/04/2007, Rio, p. 18

Tráfico e violência estão presentes em metade das estações de trens suburbanos.

Estação do Jacarezinho, 15h de uma segunda-feira: em pleno horário escolar, um grupo de adolescentes percorre a linha do trem se equilibrando nos trilhos. Num canto próximo à estação, usam uma folha de papel fino para preparar um cigarro de maconha. Parecem aflitos, ávidos para iniciar o consumo. O cigarro agora aceso passa a circular de mão em mão. Os meninos fazem careta e gestos enquanto fumam a droga e vão ficando entorpecidos. Outros grupos, formados igualmente por crianças e adolescentes, ocupam outros trechos da linha. Naquele território livre do tráfico, nada parece incomodá-los. Observados por traficantes armados, usuários de todas as idades descem do trem para comprar e cheirar cocaína e fumar maconha e crack, uma droga cada vez mais presente nas favelas do Rio.

Durante as últimas três semanas, O GLOBO percorreu de trem os ramais da Central do Brasil, constatando que o tráfico e a violência estão presentes em mais da metade das 52 estações localizadas no município do Rio. Em cinco delas, localizadas no interior das favelas do Jacarezinho, de Manguinhos, Vigário Geral, Parada de Lucas e Senador Camará, o consumo de drogas e a presença de bandidos armados tornam a situação grave e de constante perigo para a massa de trabalhadores que utiliza os ramais da Central todos os dias. Em dia de tiroteio, os maquinistas costumam atender ordens de traficantes e interrompem a passagem dos trens.

A viagem do GLOBO aconteceu dez anos depois de o jornal mostrar, numa série de reportagens em 1997, o crescimento do tráfico nos trens do Rio. Como conseqüência, o governo do estado naquela época anunciou a criação do Batalhão de Policiamento Ferroviário (BpFer) da PM e o Exército decidiu ocupar com tropas três estações da Vila Militar, como tem reivindicado agora o governador Sérgio Cabral. Em 1997, os trens eram administrados pela Companhia Fluminense de Trens Urbanos (Flumitrens), uma autarquia do governo do estado. Um ano depois da série de reportagens, o transporte ferroviário foi privatizado. Atualmente o transporte é explorado pela concessionária SuperVia.

Maquinista escapa de ser assassinado

Na estação do Jacarezinho (antiga Vieira Fazenda), considerada a mais perigosa de todas, os traficantes armados são os únicos que fazem a segurança do local, permitindo durante o dia o consumo livre de drogas nos trilhos e à noite dentro da própria estação. Toda a circulação de pessoas é controlada por eles. A ¿boca-de-fumo¿ muitas vezes fica localizada ao lado da estação, próximo à linha férrea, onde os traficantes primam pelo conforto: enquanto vendem drogas ou observam o consumo, ficam sentados numa espécie de escritório, com direito a poltrona, bebida e armas.

Um caso contado pelos maquinistas, mas não confirmado pela SuperVia, pode resumir o drama dos ferroviários. Depois de consumir drogas, uma mulher acabou morrendo atropelada por uma composição na estação do Jacarezinho. O maquinista acabou capturado por traficantes e passou nove horas refém dos bandidos. Funcionários da estação que moram no Jacarezinho conseguiram evitar sua morte.

¿ Quando soubemos o que estava acontecendo, tentamos chegar à estação, mas o maquinista já havia sido solto. Foi graças à intervenção de um rapaz que trabalhava na estação do Jacarezinho e conhecia o maquinista ¿ disse Valmir de Lemos, o índio, presidente do Sindicato dos Ferroviários do Rio.

Valmir conta que os maquinistas e usuários dos trens nos ramais de Belford Roxo (ao qual pertence a estação do Jacarezinho) e de Gramacho (estações de Manguinhos, Parada de Lucas e Vigário Geral) vivem em constante risco:

¿ Vários vagões já foram atingidas por balas, maquinistas são ameaçados e os usuários muitas vezes viajam em vagões onde o consumo acontece livremente. Tudo isso é de conhecimento da empresa que administra os trens ¿ disse.

Levantamento do Sindicato dos Ferroviários e do Batalhão de Policiamento Ferroviário apontou como áreas críticas, com tráfico intenso, oito estações do Rio: Vigário Geral, Parada de Lucas, Magalhães Bastos, Jacarezinho (antiga Vieira Fazenda), Manguinhos, Senador Camará, Costa Barros e Barros Filho. Traficantes e usuários estão presentes nessas estações. Há risco para os passageiros em dias de tiroteio. Na estação de Manguinhos, os traficantes da favela de Manguinhos costumam trocar tiros com os rivais da favela Mandela.

Passageiros e ferroviários também correm risco e estão sujeitos a assaltos e arrastões nas estações de Belford Roxo, Rocha, Porto, Vila Rosali, Pavuna, Costa Barros, Barros Filho e Honório Gurgel. Nas estações de Costa Barros e Barros Filho, a Polícia Militar já enfrentou intenso tiroteio com traficantes durante uma operação.

Nas estações de São Cristóvão, Mangueira, Méier, Engenho de Dentro, Magalhães Bastos, Realengo, Padre Miguel, Senador Camará, Triagem, Ramos, Penha e Maracanã, policiais ferroviários fazem constantemente apreensões de drogas e até de armas. Traficantes e usuários pegam os trens para deslocamentos. O perigo para o usuário na estação do Maracanã acontece durante os dias de jogos de futebol, principalmente nos dias de clássico no estádio do Maracanã.

Lênin Pires, mestre e doutorando em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), e pesquisador do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (Niufep) da UFF, nos últimos quatro anos viajou nos trens da Central do Brasil para estudar o comportamento informal dos seus usuários. Ele confirmou por experiência própria a violência crescente nas estações, nos trilhos e nos vagões. Certa vez, quando passava pela estação da Manguinhos, no ramal de Gramacho, teve que deitar no chão do vagão para fugir de balas perdidas de um tiroteio na Favela de Manguinhos.

¿ Os trens são espaços democráticos, com características diferentes em cada ramal. O usuário pode ser identificado por suas atitudes, dependendo do ramal em que viaja. Há festas dentro dos vagões, blocos de carnaval e até casamentos são realizados nos trens. Há muita solidariedade também: como o atendimento médico é precário, já vi um camelô prestar os primeiros socorros, com massagem cardíaca, a uma pessoa que passou mal ¿ contou o antropólogo.