Título: Para inglês ver
Autor: Werneck, Antônio
Fonte: O Globo, 15/04/2007, Rio, p. 19

O cotidiano dos trens da Central no Rio, visto à distância, parece caótico. Pensa-se que cada um faz o que bem entende, não havendo limites e regras definidos. Constituí outra opinião após pesquisar por dois anos os cinco ramais e 89 estações do sistema.

Acompanhar o dia-a-dia de milhares de pessoas, em distintos horários e situações, me fez perceber a existência de regras sofisticadas a possibilitar a coexistência de múltiplas identidades urbanas. Camelôs, evangélicos, vigilantes, policiais, comerciantes e usuários de drogas, cada qual com seus propósitos, baseavam em regras não escritas suas convivências conflituosas.

Naquele contexto, valores como respeito, amizade, consideração concorriam com práticas violentas em termos físicos e morais. A preocupação com os limites de exercício da autoridade e da discriminação era constante. ¿Esculhamba, mas não esculacha¿, se podia dizer. Era arriscado mediar conflitos pelas regras locais, mas parecia preferível às normas gerais oriundas de um ente distante, responsável pelas leis.

Os serviços de trens, desde seu início no Império, atendeu a lógicas díspares. Escoar para o interior as modernas mercadorias desembarcadas no porto e empurrar para longe os representantes do ¿atraso¿.

Quando o bota-abaixo do início do século XX desalojou as populações moradoras de cortiços ¿ em sua maioria negros e mestiços ¿ parcela significativa teve que deixar o Rio. Transportando produtos modernos e os ¿indesejados¿, os trens ajudaram a fundar os subúrbios e povoar a Baixada. O Rio estava liberado ¿para inglês ver¿ e usufruto de poucos. Durante décadas os habitantes dos subúrbios carioca e da Baixada seguiram discriminados pelos governantes.

Os trens eram apenas uma das expressões desse desapego. O anúncio das privatizações dos serviços públicos, em fins da década de 90, proclamavam um novo momento. Promessas de trens confortáveis, sem avarias e pontuais, indicavam reconhecer aquela população enquanto constituída de cidadãos. O Brasil parecia, enfim, tomar os trilhos da modernidade.

O uso contemporâneo de composições avariadas e os constantes atrasos nos horários dos trens, faz-me perguntar: onde está o respeito à legislação da privatização? E os direitos do usuário? Uma resposta possível é que a população segue sendo imaginada pelos administradores ¿ sejam eles públicos ou privados ¿ como dotada de menos direitos à medida que seus locais de moradia se distanciam do Centro e se escurece o tom de sua pele. Diferenças entre as composições de Deodoro e Japeri, ou entre os serviços de trens e metrô, sugerem essa hipótese. A Central do Brasil segue como significativa metáfora da modernização.

Talvez por isso mesmo, em se tratando da utilização de um meio de transporte, as pessoas prefiram arriscar conviver sob regras locais que se orientar pelas normas gerais que as discriminam.

LENIN PIRES é antropólogo, pesquisador do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas/UFF.