Título: Fantasmas na sala de aula
Autor: Weber, Demétrio
Fonte: O Globo, 16/04/2007, O País, p. 3

Programa Brasil Alfabetizado banca turmas inexistentes.

A55 quilômetros da Esplanada dos Ministérios, o programa Brasil Alfabetizado, uma das vitrines da política educacional do governo Lula, tem turmas e alunos-fantasmas. São pessoas cujos nomes constam no cadastro do Ministério da Educação (MEC) - dando origem a repasses federais para a Secretaria de Educação do Distrito Federal - sem que tenham se matriculado nos cursos nem freqüentem as aulas.

A localidade de Engenho das Lajes, na divisa do Distrito Federal com Goiás, deveria ter quatro turmas com 97 alunos do Brasil Alfabetizado. É o que prevê convênio firmado entre o MEC e o governo do Distrito Federal, no ano passado. Informados pelo GLOBO na última sexta-feira de que seus nomes aparecem na lista, seis moradores ficaram surpresos. Eles disseram não ter feito inscrição nem assistido a alguma aula.

- Não estou fazendo curso, não me inscrevi. Alguém botou o meu nome? - reagiu o borracheiro Antônio Arruda da Silva, de 46 anos.

A notícia de que haveria quatro turmas de alfabetização em funcionamento surpreendeu também o gerente de Distribuição do Pró-Família, Davi Diones Lobato. O Pró-Família entrega cestas básicas, de casa em casa, justamente à população pobre e analfabeta. Ao ver a lista do MEC, Lobato disse conhecer 73 dos 97 nomes cadastrados. Ele afirmou que nenhum deles freqüentou cursos do Brasil Alfabetizado nos últimos meses. Segundo os cronogramas da Secretaria de Educação do DF e do MEC, as aulas em Engenho das Lajes começaram em agosto de 2006 e terminariam em 27 de abril.

- Só se for fantasma. Aqui tem mais de 100 analfabetos. Se os cursos tivessem acontecido, seria uma alegria muito grande para nós - disse Lobato.

Lançado em 2003 com o objetivo de erradicar o analfabetismo, o Brasil Alfabetizado já consumiu cerca de R$700 milhões, dinheiro suficiente para atender sete milhões de jovens e adultos. O índice de analfabetismo no país, porém, continua acima de dois dígitos: 10,9% da população acima de 15 anos, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), o equivalente a 14,9 milhões de pessoas, sendo 1,8 milhão com menos de 30 anos, em 2005.

Ciente das deficiências, o MEC decidiu reformular o programa. A nova versão será lançada nos próximos dias. O investimento previsto este ano é de R$315 milhões, para atender 1,5 milhão de pessoas.

Vizinhos de cursos nunca viram turmas

O secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC, Ricardo Henriques, diz que a seleção dos alunos é responsabilidade dos parceiros, no caso a Secretaria de Educação do DF. Segundo ele, pesquisas amostrais realizadas pelo governo atestam que 85% delas existem, embora a evasão ou o excesso de faltas reduzam em até 50% o tamanho das turmas ao longo do curso:

- Essas turmas (de Engenho das Lajes) não representam o universo do Brasil Alfabetizado.

O subsecretário de Educação Pública do DF, Álvaro Chrispino, disse desconhecer o problema, mas afirmou que qualquer irregularidade será apurada. Foi por ordem dele que a secretaria divulgou a lista dos alfabetizandos, mantida em sigilo pelo MEC:

- Não sei se são alunos-fantasmas ou evadidos, o que é muito comum nesse tipo de programa. A gente tem que apurar. A informação que tenho é que há uma lista de presença, que recebemos (das alfabetizadoras) e a partir da qual fazemos o acompanhamento.

Na última quarta-feira à noite, O GLOBO esteve em Engenho das Lajes, nos dois endereços onde, segundo o cadastro do Brasil Alfabetizado, funcionariam as quatro turmas. O Centro Comunitário estava fechado às 21h, quando uma turma deveria estar saindo, e a seguinte, entrando. O outro endereço era o da casa da mãe da alfabetizadora Úrsula Andreia Lopes. No cadastro, consta que ela deveria lecionar para 50 pessoas. A alfabetizadora não estava em casa às 21h15m. Ao saber que a reportagem do GLOBO buscava informações sobre o curso ministrado por Úrsula, conhecida como Sula, vizinhos caíram na risada:

- A Sula, essa aí nunca deu aula de nada - disse o servidor público Antônio de Paiva Almeida, que trabalha no Pró-Família.

Embora o Centro Comunitário apareça como local de aula de duas turmas da alfabetizadora Gicélia Lanes Vasques, o prédio permanece fechado à noite. É o que afirma a dona-de-casa Ana Maria Conceição Alves da Costa, de 39 anos, moradora da casa em frente. Segundo ela, a última turma que funcionou no local também era financiada pelo Brasil Alfabetizado, mas em convênio com uma organização não-governamental.

Na sexta-feira, dois dias depois da primeira visita, sabendo que uma equipe do GLOBO estava em Engenho das Lajes, as duas alfabetizadoras encenaram uma aula na varanda da casa dos pais de Gicélia. Havia apenas quatro alunos, todos com cadernos novos e no máximo duas páginas preenchidas. O cronograma oficial prevê aulas de agosto a abril. Nem mesmo a mãe de Gicélia, Adélia Lanes, que também é aluna e estava na própria casa, tinha cadernos das aulas anteriores para mostrar. Gicélia e Úrsula, porém, garantem que o curso existe e reclamam de rixas locais:

- Aqui o pessoal tem olho grande. Se alguém falou que não tem aula, é mentira - disse Gicélia.