Título: Valores relativos
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 19/04/2007, O País, p. 4

AMAN, Jordânia. O antropólogo Paulo Hilu Pinto, diretor do Centro de Estudos do Oriente Médio da Universidade Federal Fluminense, foi uma das vozes entre os especialistas em questões árabes que se colocaram em oposição à idéia de que a precondição para o diálogo do Oriente com o Ocidente seria a aceitação dos direitos humanos como valor universal. Ele diz que a grande questão é entender que ninguém é contra os valores universais, mas, para eles se "universalizarem" de verdade, têm que encarnar valores e significados que são locais, e as questões concretas de cada realidade social mudam. Para ele, o Islã como norma abstrata a partir dos textos clássicos é algo que nunca existiu como realidade concreta, "da mesma maneira que os direitos humanos não existem como realidade concreta em nenhum lugar, nem nos Estados Unidos, vide Guantánamo, nem no Brasil, vide violência policial".

A única maneira de avançar nessas questões sem estigmatizar ninguém, diz ele, é ver caso por caso e, aí sim, entender onde estão os pontos de encontro. "Eu me lembro de uma feminista egípcia dizendo que tinha raiva das feministas ocidentais, porque o problema dela não era um pedaço de pano na cabeça, mas outros muito concretos: ônibus lotados que expõem as mulheres a contatos físicos abusivos (problema igual ao das mulheres pobres brasileiras nos trens suburbanos), falta de condições no emprego, falta de acesso ao mercado de trabalho, falta de licença maternidade."

Essa seria a diferença entre os movimentos feministas, que no Ocidente foram feitos contra o homem, sendo a dominação masculina percebida como a principal forma de opressão. No mundo árabe, diz Hilu Pinto, há vários movimentos feministas, mas os de inspiração ocidental têm pouca repercussão e são inclusive usados pelos estados autoritários.

Nessas sociedades se desenvolveu um feminismo islâmico em que a questão não é lutar contra os homens, mas buscar uma eqüidade na relação familiar de uma forma complementar. Dividir as responsabilidades dentro da família, mas sem implicar a dominação de um sobre o outro. Ele admite que uma das questões no mundo árabe é o impedimento de a mulher pedir a separação no casamento, enquanto o marido pode rejeitar a mulher sem alegar nada - um dos pontos destacados por Ebrahim Moosa, professor de Estudos Islâmicos do Departamento de Religião da Universidade Duke, nos EUA, como incompatíveis com os direitos humanos universais.

Mas Paulo Hilo Pinto diz que a realidade contemporânea das mulheres árabes é diferente da tradição clássica, e existem movimentos feministas islâmicos para mudar essa interpretação, dando eqüidade também nesse ponto à mulher. Ele ressalta que esses movimentos já levaram a mudanças importantes no Irã, como o estabelecimento de uma idade legal mínima para o casamento da mulher, que, segundo a "sharia", deveria ser depois da primeira menstruação.

Segundo Hilo Pinto, há uma visão equivocada do Ocidente em relação à mulher árabe, "na mesma medida em que a visão distorcida em alguns países árabes é de que o Ocidente é drogas, prostituição e Aids". Ele defendeu a tese de que, desde os anos 80 do século XX, vários movimentos políticos no Oriente Médio incorporaram elementos cruciais da democracia, como representação política, o poder das normas legais e proteção aos direitos humanos como parte de seus programas, desmentindo, assim, os que consideram que tais princípios só podem vigorar nas sociedades muçulmanas se impostas de fora.

Para Hilu Pinto, não há dúvidas de que movimentos políticos e associações islâmicas têm o papel fundamental de criar um ambiente mais pluralista e democrático em muitos países de maioria muçulmana, embora o comprometimento com esses princípios e a prática real ainda possa variar muito de país para país. Ele explica que não é possível pensar que exista uma uniformidade nas práticas, no entendimento e nos valores da religião.

Dentro do Islã haveria uma pluralidade de identidades religiosas que é tão ou mais diversa do que a que existe na Europa, no Brasil ou nos Estados Unidos. "Existem pessoas que seguem à risca o que elas acham que são os preceitos religiosos, outras pessoas que ignoram, há também aquela religiosidade burguesa de rito de passagem, então você casa, inicia seu filho na religião, põe ele numa escola religiosa, mas não necessariamente você segue uma vida religiosa, assim como católicos que não vão à missa todos os domingos, se divorciam, usam camisinha".

Hilu Pinto chama a atenção para o fato de que "é fundamental entender que existem vários tipos de experiências religiosas que organizam as identidades muçulmanas no Oriente Médio". Ele chama de "histeria da mídia" a idéia do Islã politizado que predomina no Ocidente, que refletiria apenas uma pequena minoria, de certa maneira marginal, dentro das sociedades muçulmanas, "que têm suas repercussões políticas exacerbadas pelos conflitos e pela própria visibilidade que a mídia costuma dar".

Segundo ele, dentro do universo religioso há pessoas "extremamente moderadas, ilustradas, que têm leituras bastante modernas, amplas e abertas da religião". No caso da Síria ele cita Mohammed Habash, clérigo muçulmano que é membro do Parlamento sírio e diretor de um dos centros islâmicos de Damasco, "que afirmou com todas as letras que o Islã não tem o monopólio da salvação, o que quer dizer que todas as religiões são corretas, não existe uma melhor que a outra".