Título: Medir os riscos
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 21/04/2007, Economia, p. 26

Se faltar mesmo o gás da Bolívia, a curto prazo, não há alternativa alguma, e isso pode acabar afetando as empresas que usam gás natural. O corte anunciado ontem está despertando justamente esse temor. Mas, se não houver o cataclismo, que chance tem o país de se prevenir contra déficits no abastecimento de energia? Um estudo do especialista Mário Veiga mostra que há riscos maiores que os que o governo admite, menores que os que alguns alardeiam. Ainda há tempo. Não muito.

Veiga fez o trabalho dentro do projeto "Energia Transparente", do Acende Brasil, e sua preocupação foi tentar esclarecer que risco real existe, fugindo tanto da visão otimista do governo, quanto da análise muito negativa de empresários. A opinião pública tem sido bombardeada por análises que sustentam pontos opostos. A ministra Dilma Rousseff disse, em novembro do ano passado, que "nem que a vaca tussa haverá risco de apagão"; em agosto, o ministro Silas Rondeau havia dito que "só um crescimento maluco" produziria o problema. Já a Fiesp avaliou que, se o país crescer de 4% a 5% nos próximos anos, faltará energia. Um estudo do Ministério da Fazenda falava da preocupação com déficit. Rondeau, ontem, admitiu até que o governo poderá acionar um plano de contingenciamento de gás na próxima semana caso não se resolva o problema na Bolívia. De início, o plano pouparia consumidores residenciais e industriais.

A Petrobras vinha dizendo que a Bolívia não interromperia o fornecimento de gás, pois o país vizinho seria o maior prejudicado. Porém ontem os bolivianos tiveram que fechar já parte das torneiras - embora não tenham cortado o fornecimento para os contratos com a Petrobras. O que acontece é que os movimentos sociais que estão protestando agora não são controlados pelo presidente Evo Morales, nem parecem ter muito claro o que perderiam caso a estatal brasileira saísse de lá.

Mesmo em condições normais, em que nada disso estivesse acontecendo, existe risco de déficit de energia mais cedo que o governo admite. "Os resultados, no caso do cenário de referência, são de que o risco de racionamento a partir de 2010 é relativamente elevado; para os demais casos, os problemas de suprimento começariam em 2009", diz o estudo.

O cenário de referência de que fala é o de que a demanda aumente, mas a nova oferta aconteça dentro do previsto. O principal risco de suprimento viria da falta das usinas termelétricas a gás. O país seria então suprido - explica Veiga - pela utilização mais intensa dos reservatórios. As chuvas abundantes dos últimos anos encheram os reservatórios, e o país formou uma espécie de "poupança energética". O problema é que essa utilização mais intensa levará à redução da capacidade até 2009 ou 2010. Caso ocorram outros cenários - como o de demanda crescendo ainda mais, ou de não se concretizar a oferta programada de energia, ou ambos, no cenário que ele chama de "estresse" - os problemas poderão ser antecipados.

Para quem acha que está tudo bem porque 2009 está longe, é bom lembrar que, em energia, tudo tem que ser programado com bastante antecedência. Levam-se quatro anos para fazer uma hidrelétrica. As usinas do Rio Madeira são bem mais complicadas que parece: além do impacto ambiental ainda não dimensionado, que foi comentado ontem pela ministra Marina Silva, elas estão muito longe dos centros consumidores.

Mário Veiga acredita que o governo tem um bom leque de opções para evitar o racionamento, mas é preciso ter consciência dos riscos para preveni-los. O Brasil tem uma capacidade instalada de geração de 100 mil MW para uma demanda de 62 mil MW. "Mesmo subtraindo-se toda a capacidade de geração das termelétricas, 7 mil MW, ainda sobrariam 31 mil MW, que seriam mais que suficientes para atender à demanda nos próximos anos. Neste caso, por que há preocupação com o suprimento de energia?", pergunta-se.

Ele explica que o raciocínio estaria correto se toda essa energia fosse "firme", ou seja, produzida por termelétricas, por exemplo. Mas, como 85% da oferta de energia brasileira dependem das condições hidrológicas, o risco de a vaca tossir é maior. Uma termelétrica de 1.000 MW, supondo-se, claro, que haja gás, tem uma energia "firme" de 900 MW, mas, numa hidrelétrica, isso cai para 550 MW.

A energia firme de 2007 é de 55 mil MW, superior à demanda de 51 mil MW. Mas, se quase não houve investimento nos últimos anos, de onde vem esse excesso de oferta? Veio da redução permanente do consumo de quase 7 mil MW desde o racionamento de 2001.

Veiga mostra que, mesmo nos estudos oficiais, há diferenças, pois o governo estaria usando "termômetros" distintos. A EPE concluiu que o risco de déficit para os próximos anos está dentro do limite considerado aceitável; abaixo de 5%. O ONS acha que o risco está acima de 5% em todos os anos, e que, em 2010, chega a 10%. Um dos desafios é escolher o critério correto de estimar a escassez; o outro é saber quando e de que maneira racionar, ensina Mário Veiga.

Nos cenários do estudo, os riscos de se decretar racionamento no Sudeste oscilam entre 8% e 23,5% em 2010 e entre 14% e 30% em 2011. Mesmo assim, Veiga diz que "não há razão para alarme", porque ainda há tempo de ações preventivas. Uma das medidas mais importantes seria - vejam só - "normalizar o abastecimento de gás", mas com o aumento da produção nacional e a importação de GNL. A outra, a realização dos leilões de energia alternativa a partir deste ano. Veiga sugere também que o governo unifique critérios e medidas para falar a mesma linguagem e, assim, dar mais segurança aos consumidores e empresas.