Título: Morre Yeltsin, o homem que enterrou a URSS
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Fonte: O Globo, 24/04/2007, O Mundo, p. 26

Insuficiência cardíaca mata aos 76 anos o primeiro presidente eleito da Rússia, político controvertido que mudou a História

MOSCOU. Boris Yeltsin, que teve papel crucial no fim da União Soviética, tornando-se o primeiro presidente democraticamente eleito da Rússia, morreu ontem, em Moscou, aos 76 anos, de insuficiência cardiovascular ¿ após anos de silêncio e distância do poder. O político que ocupou a Presidência por dois mandatos consecutivos, entre 1991 e 1999, será enterrado hoje, num país que lembra tanto de sua resistência à linha-dura comunista quanto da crise econômica que se instalou em seu governo.

Controvertido e carismático, famoso pelas gafes e pelos rumores relacionados a bebida, Yeltsin vai ser mais lembrado por sua atuação em 1991, quando, para impedir um golpe contra o presidente Mikhail Gorbatchov, subiu num tanque diante do Parlamento russo e conclamou a população a impedir a ação de setores radicais.

¿ Ele foi o responsável pelo nascimento de toda uma época. Uma nova Rússia democrática nasceu, um Estado livre e aberto ao mundo. Um Estado onde o poder pertence verdadeiramente às pessoas ¿ disse o presidente Vladimir Putin, que Yeltsin indicou como seu herdeiro antes de renunciar em 1999.

Líderes mundiais destacaram o papel de Yeltsin em levar liberdade e democracia à Rússia, após décadas de regime totalitário, e ao impulsionar reformas de mercado. Segundo o presidente dos EUA, George W. Bush, Yeltsin ¿ajudou a colocar os alicerces da liberdade na Rússia¿.

¿ Foi uma figura histórica que serviu seu país num momento de mudança. Aprecio os esforços que fez para construir um forte relacionamento entre a Rússia e os EUA ¿ disse Bush.

Mas Mikhail Gorbatchov, o último presidente soviético, e que seria substituído por Yeltsin, fez uma declaração dúbia:

¿ Expresso profundas condolências à família do morto, em cujos ombros repousam grandes acontecimentos para o bem do país e graves erros.

Segredo em torno de doença e hospitalização

A morte foi anunciada ontem pelo Kremlin, que, no entanto, não informou a causa. Mas fontes médicas disseram que Yeltsin morreu às 15h45m de ontem, no Hospital Clínico Central, de insuficiência cardiovascular. Como ocorria nos anos soviéticos, ninguém sabia que ele estava internado até sua morte ser anunciada.

Yeltsin ficou no cargo oito anos, e sofreu vários problemas de saúde. Ele escreveu o capítulo final de sua carreira política quando, no final do século XX, anunciou a renúncia, tornando-se também o primeiro político russo a abrir mão do poder espontaneamente e de acordo com o processo constitucional.

Polêmico, foi amado e odiado pelos russos. Muitos perderam as economias durante a sua ¿terapia de choque¿, viram filhos morrerem na Guerra da Chechênia ou assistiram a imagens dele, aparentemente bêbado, cometendo gafes, como ao agarrar a batuta de um maestro em Berlim e tentar reger a orquestra.

Nascido numa família de camponeses nos montes Urais em 1931, Boris Nikolayevich Yeltsin cresceu numa cabana de madeira. Adulto, avançou na hierarquia do Partido Comunista e em 1985 foi convidado por Gorbatchov para comandar o partido em Moscou e combater a corrupção em sua estrutura. O carismático Yeltsin se converteu em líder de uma rebelião cada vez maior contra o regime comunista. Pressionado, deixou o Politburo (comitê central do partido) em 1988 e, dois anos depois, o próprio PC.

Em agosto de 1991, conservadores tentaram dar um golpe de Estado contra Gorbatchov e as reformas políticas e econômicas que implementava, aprisionando o presidente. Yeltsin organizou os liberais. Milhares de pessoas cercaram o prédio do Parlamento por três dias. Do alto de um tanque, Yeltsin pediu aos russos que resistissem ao grupo que havia tomado o poder. Aos soldados, pedia que não atirassem.

¿ Eles sabem que as coisas chegaram a um ponto que, se perderem, não perderão apenas suas poltronas, mas estarão sentados num tribunal ¿ disse Putin diante de 150 mil pessoas.

Yeltsin garantiu, assim, o retorno de Gorbatchov ao Kremlin, ao mesmo tempo em que o enfraqueceu, ganhando mais poder e influência. No final de 91, a União Soviética deixava de existir. Yeltsin se tornaria o primeiro presidente da Rússia.

Dois anos depois, ordenou que tanques disparassem contra o Parlamento, quando o prédio foi ocupado pela linha-dura. Em 1994, enviou tropas para a Chechênia, para conter a rebelião separatista. Mais tarde, declarou que não ia tolerar a ¿desintegração da Rússia¿, mas reconheceu que cometeu erros.

¿ Eu sinto a dor de cada mãe de família. Meu coração sangra por cada vítima. Isso me faz perder o sono, e nisso ninguém pode me ajudar.

Seus últimos anos no poder foram ofuscados por um comportamento errático e pela queda na popularidade devido à crise econômica. Problemas de saúde eram acompanhados por rumores de alcoolismo. Críticos dizem que uma de suas principais falhas foi permitir que o caos se instalasse no país, o que levaria a uma decepção dos russos em relação à democracia. Isso permitiria que Putin, mais tarde, voltasse atrás em muitas reformas de seu antecessor.

Vivendo os últimos anos numa chácara, perto de Moscou, Yeltsin nunca criticou Putin. Havia rumores de que os dois teriam feito um acordo segundo o qual o ex-presidente não seria processado pela polêmica privatização de empresas do Estado em troca de seu silêncio.