Título: Casa em crise
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 29/04/2007, O Globo, p. 2

Imagine a situação: um importante tratado internacional, subscrito pelo Brasil, precisa ser referendado com urgência pelo Congresso mas enfrenta um problema na Câmara. Para votar a favor, os deputados que representam os apicultores do Vale das Flores exigem do governo o perdão de seus débitos bancários. É ficção, mas muito próxima da realidade atual da Câmara, uma Casa em crise.

A prevalência dos grupos setoriais, causando todo tipo de transtornos ao processo legislativo, é apenas um dos elementos causadores da crise de produtividade, confiança e credibilidade que afeta o Congresso, a Casa de forma mais aguda. Na última pesquisa CNT-Sensus, apenas 1,1% dos entrevistados disseram confiar no Congresso. A legislatura está começando, não estourou nenhum escândalo mas a Câmara já acumula desgastes. Ora os salários dos deputados e a verba indenizatória, ora o trabalho às segundas-feiras. Era mesmo preciso ter uma regra para o julgamento de delitos ocorridos no mandato anterior. Mas os critérios aprovados pouparam três deputados que escaparam da cassação pela renúncia, aumentando o desgaste. Foi neste clima que, na quinta-feira, depois de ouvir seguidas queixas de deputados, o presidente da Casa, Arlindo Chinaglia, anunciou o processo contra o comentarista Arnaldo Jabor, por ter chamado os deputados de canalhas. A liberdade de imprensa lhe faculta isso. O zelo institucional - ainda que nem todos os indivíduos zelem por ela - permite a reação de Chinaglia. Pouco antes, ele ouvira do deputado Humberto Souto (PPS-MG), que depois de seis mandatos virou ministro do TCU e agora voltou à Casa: "Se nada for feito para restaurar o respeito à Casa, daqui a pouco vão pedir seu fechamento". A morte das democracias começa sempre pelos Parlamentos.

A crise da Câmara é maior, talvez porque os deputados tenham errado mais; talvez porque a Casa seja mais aberta à fiscalização e à crítica, como diz Chinaglia. Mas certamente, porque algumas coisas estão profundamente erradas na instituição e no sistema político, e não apenas na conduta dos indivíduos.

Muito se tem dito, atribuindo a frase a Ulysses Guimarães, que a nova legislatura será sempre pior que a anterior. Pior que a última nenhuma outra pode ser, acredita Chinaglia, lembrando os escândalos do valerioduto e dos sanguessugas. Mas a legislatura ainda está novinha em folha e já enfrenta desgaste, deixando perplexos os novos e os retornados. No Senado, o ex-governador Jarbas Vasconcelos confessa que não agÜenta meia hora de plenário sem ter vontade ir embora. Acha tudo muito pior do que no seu tempo de deputado, 20 anos atrás.

Mas o que mudou, o que piorou e como será possível consertar o estrago? O que fazer para restaurar a confiança mínima num Parlamento que foi tão importante na transição e na construção da democracia? Os que retornam, como Jarbas, têm base para comparação. Ibsen Pinheiro, que foi presidente da Casa, foi cassado num processo que gerou culpas e penitências, é um deles. Para ele, tudo se resume numa fragmentação doentia das vontades políticas, causada basicamente pelo voto proporcional em lista aberta. "Este nosso sistema é o paraíso das minorias". Todas elas conseguem assentos na Câmara, onde depois fica impossível formar uma maioria autêntica. Com isso, a Casa trava, o processo legislativo emperra, os partidos se desagregam e as condutas se deformam. Está errado o sistema em que o presidente obtém 60% dos votos e seu partido, menos de 1/6, diz Ibsen, que juntamente com representantes do PSDB, DEM e PT, negociam com os outros partidos uma reforma política básica:

- Só conseguiremos aprová-la por lei ordinária. Terá que ser mínima: voto em lista fechada, financiamento público e fidelidade.

Um outro que volta é Jofran Frejat (PTB-DF), depois de três mandatos e uma legislatura fora. A diferença que ele destaca é o predomínio dos grupos de pressão setorial - temáticos, corporativos, regionais ou econômicos - sobre os partidos em si. Com isso, não se discute o mérito das matérias e sim o atendimento de pleitos destes grupos. É a barganha. Para aprovar as MPs do PAC, o líder do governo, José Mucio, ouviu as mais díspares exigências dos aliados.

Para o já citado Humberto Souto, hoje faltam grandes figuras, mas os deputados são até mais instruídos e mais preparados.

- O que me espanta é a sofreguidão com que aderem ao governo, em busca de vantagens. Não votam por convicção ou por coerência. O Colégio de Líderes fixa a pauta, os líderes orientam e os deputados apertam o botão - diz ele.

Mas por que os deputados são tão dependentes das emendas e de outros favores governamentais? Porque, sem isso, não se reelegem. As campanhas são muito caras e as bases cobram não é o voto, a opinião ou a conduta. É a obra, é a emenda, são os recursos para o setor, a região ou a corporação. Isso tem a ver com o voto proporcional em lista aberta, onde cada candidato arranja seu financiamento e compete dentro do próprio partido.

- Precisamos desprivatizar os mandatos - diz Ibsen Pinheiro.

Outro que estranha o modo contemporâneo de fazer política é Alceni Guerra (DEM-PR), ex-ministro da Saúde, fora da Câmara desde 1991. Espanta-se com a obsessão dos colegas em garantir os meios de se reeleger. Ciro Gomes, estreante, reclamando da demora de uma votação, ouviu da colega Rita Camata, também retornante: "Só se desligarem a TV Câmara". Com o sinal aberto, vem a obsessão em aparecer para o eleitorado, falando ou complicando a votação.

Além da reforma política, é preciso reformar, como já propôs Miro Teixeira, os ritos da Casa. Não é possível que os 513 deputados tenham que participar de toda e qualquer votação. Não é possível conservar um regimento que permite a chicana, a obstrução pirracenta da oposição ou as manobras dos governistas.