Título: A democracia russa é uma ditadura moderna
Autor: Magalhães-Ruether, Graça
Fonte: O Globo, 29/04/2007, O Mundo, p. 42

Ex-campeão mundial de xadrez, que hoje lidera bloco de oposição a Putin, diz ver risco de crise política no país

VIENA. O ex-campeão mundial de xadrez Garry Kasparov hoje usa sua inteligência estratégica para um desafio muito maior: como pôr um fim pacífico ao governo do superpopular presidente da Rússia, Vladimir Putin. O enxadrista ¿ que conquistou títulos mundiais por mais de 16 anos ¿ é um dos principais adversários do presidente russo desde que ingressou na política, em 2005. Aos 44 anos, tem o pé no chão e defende a união da oposição para a indicação de um candidato único à Presidência, no próximo ano. Em entrevista ao GLOBO em Viena, Kasparov revelou que apoiará o candidato que tiver mais chance contra o bloco de Putin.

O senhor vê o perigo de uma nova Guerra Fria com a declaração do presidente Putin de moratória em relação ao Tratado sobre Armas Convencionais na Europa (CFE)?

GARRY KASPAROV: Ele quis mostrar a ameaça estrangeira e assim consolidar sua autoridade. Trata-se de um comportamento normal nos regimes autoritários, mostrar que o inimigo vem de fora. Mas o que vejo com mais preocupação é o perigo de uma crise política na Rússia, que poderá acontecer no final deste ano e no início do próximo.

Como o senhor descreveria a democracia russa?

KASPAROV: A democracia russa é na verdade uma ditadura moderna. Pior do que a Russia só a Bielorrússia. Eu me pergunto por que os políticos ocidentais criticam o governo de Minsk mas não o de Moscou? Trata-se de um país onde as pessoas são interrogadas, presas ou assassinadas. O assassinato de Anna Politkowskaya (jornalista opositora) foi uma das piores tragédias da história moderna da Rússia. Temos uma democracia onde todos que são contra o regime correm risco. Ninguém na Rússia está seguro contra perseguições. Eu mesmo fui detido e interrogado como se fosse um extremista, embora a única coisa que tenha feito foi participar de uma manifestação de protesto contra o governo. Eu não vejo o regime como democracia, embora os países ocidentais tenham fechado os olhos para a realidade na Rússia.

Quando pensa no que aconteceu a Anna Politkowskaya, teme por sua própria situação?

KASPAROV: Todos que criticam o regime na Rússia têm medo de ser vítima de um atentado. Eu só saio acompanhado de seguranças. Confesso que às vezes tenho medo até de ser envenenado. Mas acho importante que o medo não cause paralisia. Nós vamos realizar muitos eventos, marchas de dissidentes, e tentar influenciar os resultados das próximas eleições (para o Parlamento, no final deste ano, e Presidência, no início do próximo).

As pesquisas indicam, porém, que Putin tem o apoio de cerca de 70% da população. Como o senhor explica esse paradoxo entre a possível falta de democracia e popularidade?

KASPAROV: As pessoas são favoráveis ao regime porque não têm acesso a meios de comunicação livres. Se a partir de hoje os meios de comunicação tivessem a chance de informar livremente, sem qualquer influência, eu diria que seria mais fácil vencer Putin ou seu candidato no próximo ano. Mas Putin é ajudado também pelo medo que as pessoas têm de uma volta da situação caótica do início dos anos 1990.

Ou a popularidade decorre da boa situação econômica que predomina hoje, ao contrário dos anos de crise do governo anterior, de Boris Yeltsin?

KASPAROV: A grande riqueza da Rússia vem do petróleo. Os altos preços do produto são os responsáveis pelo boom dos últimos anos. No momento em que houver uma queda de preços, a situação econômica poderá mudar. Mas o que eu mais critico é que apenas uma pequena camada da população tira proveito da situação. A maioria vive pior. Além disso, a riqueza não é dividida por todas as regiões.

O governo de Putin tem medo da oposição?

KASPAROV: Até agora praticamente não havia uma oposição parlamentar na Rússia pelo motivo que já mencionei, a falta de liberdade de imprensa. Mas pela primeira vez desde que Putin assumiu observo um clima de nervosismo no Kremlin. Na última eleição presidencial o governo demonstrava muito mais segurança. Já a do próximo ano é vista com nervosismo, porque Putin não poderá se candidatar a um terceiro mandato, a não ser que ele mude a Constituição. Trata-se de um fenômeno que ocorre em regimes semi-totalitários, que dependem de um líder forte e vacilam no momento em que este líder deixa o poder.

É possível uma comparação entre os governos de Mikhail Gorbatchov e Boris Yeltsin com o atual?

KASPAROV: São eras diferentes e por isso é difícil uma comparação. Gorbatchov contribuiu para o fim do comunismo. Já a fase do governo Yeltsin foi como que de adaptação à era pós-comunista. Há motivo de críticas a Yeltsin no que se refere ao abuso do poder e à corrupção. Mas na era Yeltsin o governo não questionava a liberdade individual, como ocorre atualmente. Veja o enorme aparato policial contra as últimas manifestações da oposição em São Petersburgo e em Moscou.

O senhor vai se candidatar à Presidência no próximo ano?

KASPAROV: No momento, não vejo como importante quem se candidatará. O importante é termos criado uma plataforma que pode ter chance de vencer no próximo ano. Há várias pessoas que poderão se candidatar. Não quero definir ainda quem. A oposição reúne diversas tendências políticas que têm, porém, como objetivo comum a redução dos poderes do presidente na Rússia e a criação de um regime realmente democrático.

Quando esteve no Brasil pela última vez?

KASPAROV: No ano passado eu participei de um evento em São Paulo e em Belo Horizonte. Atualmente, está sendo preparada a edição em português do meu livro ¿Estratégia e a arte de viver¿, que deverá ser lançado no Brasil ainda este ano.

O que o xadrez tem a ver com ¿arte de viver¿?

KASPAROV: Tento mostrar nesse livro que, como no xadrez, na vida e até na política não há apenas uma estratégia que leve à vitória. Aprendi jogando xadrez, em campeonatos mundiais, que a agressividade sozinha não leva a nada. É preciso usar as estratégias, ter calma e cautela.