Título: Que decência é essa?
Autor: Watkins, Kevin
Fonte: O Globo, 01/05/2007, Opinião, p. 7

Louisiana não fica nem um pouco perto, mas, quando se está nas margens do Rio Dechatu, que corta a cidade etíope de Dire Dawa, a sensação que se tem é de que esta cidade está irmanada na tragédia com Nova Orleans.

Na verdade, ¿rio¿ não é a palavra que melhor descreve o Dechatu, já que na maior parte do ano ele é pouco mais que um canal arenoso e seco ¿ testemunha sem vida da seca e do colapso ambiental. Todos os anos, nos meses de julho e agosto, as chuvas que caem nas montanhas a leste de Dire Dawa arrastam terreno abaixo milhares de toneladas de solo superficial das fazendas depauperadas, despejando esse espólio nos afluentes do Dechatu. Mesmo nessa época, quando o rio chega à cidade, não passa de um filete d¿água.

No ano passado, porém, foi diferente. Era 3 de agosto, e Nova Orleans estava se preparando para relembrar a passagem do Furacão Katrina, um ano depois, quando o Dechatu se rebelou. E se tornou destrutivo. Algumas das chuvas mais fortes já registradas nas montanhas do leste desataram uma enchente devastadora. As águas atingiram Dire Dawa de manhã cedo, deixando mais de trezentos mortos e dez mil desabrigados. Cerca de cinco mil pessoas ainda vivem num acampamento provisório para desabrigados, em barracas doadas pelo Exército dos Estados Unidos.

O envolvimento das mudanças climáticas no desastre é fato comprovado. Nos últimos anos, a Etiópia tem sido atingida por recorrentes secas e fortes enchentes ligadas ao fenômeno El Niño e ao aquecimento do Oceano Índico. Bastava caminhar pelo acampamento para desabrigados em Dire Dawa para ver os rostos humanos por trás da catástrofe que se assomava, e que tinha sido prevista pelo relatório do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

Nova Orleans guarda dolorosas semelhanças com o que aconteceu na Etiópia. As vítimas do Katrina concentravam-se nos bairros mais pobres da cidade, como o Nono Quarteirão. Em Dire Dawa, a área mais atingida foi o nono distrito, onde as casas tinham sido construídas nas margens do Dechatu. Hoje, das casas restam apenas algumas vigas ¿ um lembrete do poder destrutivo da Natureza.

Hawa Bahar, uma mulher de 40 anos de idade que vive numa barraca com 45 outras pessoas no acampamento para refugiados, não estava em Dire Dawa quando veio a enchente. Quando retornou à cidade, descobriu que havia perdido seu marido, suas duas filhas e tudo o que tinha. Agora, enquanto toma conta das netas, tenta reconstruir sua própria vida. ¿A enchente me deixou sem nada,¿ lamenta.

No meio da tragédia, histórias positivas passam facilmente despercebidas. Dada a magnitude, o desastre poderia ter sido muito pior. O governo etíope e agências de ajuda humanitária se mobilizaram rapidamente, levando alimentos, medicamentos e sistemas potabilizadores de água, e salvando inúmeras vidas. Em menos de 24 horas, chegou à cidade, vindo de Djibouti, um comboio do Exército dos Estados Unidos trazendo barracas para abrigar a população.

Os esforços de reconstrução não pararam por aí. Apesar da lentidão de alguns doadores, como a União Européia, que tardaram em liberar os recursos que haviam prometido para reconstrução, casas começaram a ser reconstruídas. Concomitantemente, autoridades locais e a Organização Internacional para as Migrações implantaram um programa de treinamento para dar àqueles que tinham perdido seus meios de vida e lares novos ofícios, como pedreiros, eletricistas e carpinteiros, tendo formado, até o momento, mais de 220 homens e mulheres.

A pobreza em Dire Dawa é de dar dó, mas a cidade, o país, e as agências internacionais de ajuda humanitária conseguiram enfrentar o desafio de salvar vidas e de iniciar as obras de recuperação pós-crise com muito mais convicção do que suas contrapartes em Nova Orleans.

A notícia ruim é que as mudanças climáticas, como alerta o relatório do IPCC, vão causar mais inundações, mais secas e mais vulnerabilidade, dificultando ainda mais a luta de milhões de pessoas para sair da pobreza.

Naturalmente, norte-americanos e europeus também terão de lidar com as conseqüências das mudanças climáticas; com uma diferença, porém: o problema com o qual os países ricos estão lidando foi causado pelos próprios. Um etíope emite, em média, 0,03 tonelada de carbono por ano; um norte-americano, mais de 10 toneladas. Mas as diferenças não param por aqui, porque os habitantes da baixa Manhattan, de Londres ou de Paris, ao contrário daqueles de Dire Dawa, são protegidos por sistemas multibilionários contra enchentes.

Depois de tanto refletir sobre o assunto, ocorreu-me a seguinte pergunta: que decência é essa das nações mais abastadas que justifica que milhões de pobres no mundo tenham que afundar ou se virar sozinhos numa crise causada por elas?

KEVIN WATKINS é diretor do Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD, das Nações Unidas.