Título: Pornografia é ver criança passando fome
Autor: Noblat, Ricardo e Fusco, Tânia
Fonte: O Globo, 02/05/2007, O País, p. 10

Ministro do STF lança livro carregado de erotismo e afirma que o Judiciário é uma arena da luta de classes

BRASÍLIA. Foi um escândalo quando a CPI do mensalão pago a deputados descobriu a existência da cafetina Jeany Mary Corner, que animava festas estreladas por companheiros do PT, durante o primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Jeany quebrou e sumiu. Desde então, as noites políticas de Brasília perderam parte do seu brilho.

Outro dia, a salvo de qualquer prejuízo eleitoral, Lula arranhou o tabu que impede os políticos de falaram de sexo de um modo, digamos, menos convencional. Durante solenidade fora daqui, disse que "quase todo mundo gosta de sexo". E citou o chamado ponto G para sustentar uma de suas peculiares comparações.

Nunca na história deste país um ministro de tribunais superiores havia ousado escrever um livro com conteúdo erótico. Até que o primeiro ousou. O gaúcho Eros Grau, 67 anos, ministro do Supremo Tribunal Federal, saiu da toga e lançou na semana passada o romance "Triângulo no ponto" (Editora Nova Fronteira). Virou o escândalo mais recente da República.

O livro conta a história de Rogério, Xavier e Costa, que atravessam os anos da ditadura de 64 fugindo da polícia e fornicando. "A narrativa política é mais forte do que a sensual", explica o autor. Mas a sensual está dando mais o que falar. Abrange de sexo anal a "válvula de sucção" que liberava "sonoras flatulências vaginais". Com a palavra, Eros "40" Grau(s).

Ricardo Noblat e Tânia Fusco*

O que é um "peitinho de perdiz"?

EROS GRAU: Um peito pequeno.

E "enterrar poemas nos seus recônditos"?

GRAU: Despejar libido.

E "válvula de sucção"?

GRAU: Será tão rara assim? É muito legal.

Faz-se o que com "o pote de mel" que aparece no livro?

GRAU: Lambe-se.

Um candidato ao concurso da magistratura seria aprovado, caso fosse autor desse livro?

GRAU: Por que não? Ele poderia resumir o livro assim: "Sou humano".

Há quanto tempo pensava em fazer ficção?

GRAU: Desde a década de 70, quando namorava minha mulher. Pensava em um livro que narrasse a história de três personagens, três destinos, três pontos de chegada.

Os personagens são reais?

GRAU: Não. Mas você só compreende o mundo a partir das suas referências. É por causa de coisas vividas que muitas vezes nós, juízes, decidimos com maior ou menor amplitude.

Mas o juiz julga com o conhecimento ou com o coração?

GRAU: Vocês nunca ouviram falar em jurisciência. Falamos em jurisprudência. O que se faz no Poder Judiciário é praticar a prudência. O grande problema da ciência é não ter resposta para uma questão. O grande problema da prudência é ter respostas demais.

Mas, pelo que o senhor sugere, o coração também pesa.

GRAU: O jornalista Nelsinho Motta é autor de versos que sempre uso em salas de aula: "Nada do que foi será do jeito que já foi um dia". Atenção para a dialética: "Tudo passa, tudo sempre passará". A vida é movimento.

Os personagens do seu romance que o digam...

GRAU: Para mim, o mais simpático é o Costa. Foi de esquerda e virou empresário. Torturado, fez amigos no exílio e, de repente, nos dias atuais, encontra alguns deles em cargos importantes.

Além de Costa, do que mais gosta no livro?

GRAU: Gosto dele como um todo, mas há duas coisas de que gosto mais. Uma é a descrição da noite em que a ditadura baixou o Ato Institucional número 5 (13/12/1968). Costa estava em Búzios com amigos. A outra é a que trata do comício da Central do Brasil (março de 1964). Foi o estopim para a derrubada do presidente João Goulart.

Onde o senhor estava na noite do AI-5?

GRAU: Em Búzios. E na noite do comício, no comício. Eu era do Partidão (Partido Comunista Brasileiro).

Foi do Partidão até quando?

GRAU: Quem foi nunca deixa de ser.

O senhor foi preso durante a ditadura?

GRAU: Fui, no início dos anos 70. E fui solto porque Dilson Funaro, então secretário de Planejamento do governador Abreu Sodré, em São Paulo, foi macho, procurou-o e disse: "Se não libertarem Eros, eu dou entrevista e peço demissão".

O senhor foi torturado?

GRAU: Próxima pergunta.

Quando publicará seu segundo livro de ficção?

GRAU: Quando me aposentar do tribunal, em 2010. Embarcarei para São Paulo no dia seguinte. Aqui o ar é seco. E eu me sinto inseguro. Quatro bandidos assaltaram minha casa. Aqui é uma cidade onde não sou eu mesmo. Aqui sou ministro.

Essa condição o incomoda?

GRAU: Sou um homem simples. Aqui as pessoas se relacionam com você não porque gostem de você, mas pelo cargo que você ocupa. Sou um sujeito aberto às possibilidades que virão ainda. Acho que daqui a 20 anos somente minha família se lembrará de mim.

Que tal ser lembrado como o primeiro ministro do Supremo a escrever um livro erótico?

GRAU: Ninguém é escritor erótico. Gostaria de ser lembrado como um escritor de ficção.

Está com pinta de candidato a vaga na Academia Brasileira de Letras...

GRAU: Não sei se irei para a Academia. Mas quem não gostaria?

O senhor se arrepende de ter escrito alguma cena do livro?

GRAU: Não.

E de alguma sentença que deu?

GRAU: De nenhuma especificamente. Temos um direito escrito que garante nossa convivência harmoniosa. O que o direito manda não coincide necessariamente com o que eu acho, mas tem de ser aplicado. O direito assegura a ordem.

Ele serve mais à ordem do que à justiça?

GRAU: O direito que está aí é mais comprometido com a preservação da ordem burguesa. (A expressão "burguesa" remete Eros ao seu romance. Ele lê: "Eu digo: nós transportávamos a utopia nos nossos ombros").

Essa utopia se perdeu?

GRAU: Para mim, não. Tento preservá-la nos votos que dou. O Poder Judiciário é uma arena onde se joga a luta de classes. Sempre faço algumas coisas mostrando a minha preocupação com o social.

Há Justiça no Brasil?

GRAU: Isso tem a ver com o que é possível dentro dos quadros vigentes, do modo de produção social hegemônico. Nossa ordem jurídica é comprometida com as relações mercantis - sobretudo com as de intercâmbio.

Os personagens do seu romance apreciam muito um intercâmbio...

GRAU: Mas não dispensam as preliminares...

O senhor já se declarou incompetente?

GRAU: Inúmeras vezes. (Rindo) Eu estou falando no tribunal...

Com culpa ou sem culpa?

GRAU: Sem.

Com ou sem testemunha?

GRAU: Melhor sem.

Confessar ou negar sempre?

GRAU: Esconder.

Uma cláusula pétrea?

GRAU: O amor.

Seu conceito de pleno?

GRAU: Aquilo que enche o coração.

Prevaricação é crime ou pecado?

GRAU: Depende. Algumas são criminosas. Outras nem sequer são pecado.

E o erotismo é trash ou libertário?

GRAU: É libertário. Uma vez, nos anos 80, proibiram um filme chamado "Eu vos saúdo, Maria". Perguntaram-me se era pornografia. Respondi que não. Pornografia é ver criança passando fome.

*Especial para O GLOBO

www.oglobo.com.br/noblat