Título: Agora, a lista do bingo
Autor: Rocha, Carla e Ramalho, Sérgio
Fonte: O Globo, 06/05/2007, Rio, p. 15
A MÁFIA OFICIAL
Assim como os bicheiros nos anos 90, donos de casas de jogo vinham dando propina a 62 policiais.
Amáfia dos bingos pagava propinas regulares a 62 policiais civis do Rio, para darem proteção à organização criminosa e garantirem o funcionamento das casas de jogo. Um levantamento do GLOBO, feito a partir do relatório da Operação Hurricane, da Polícia Federal, revela o total de agentes públicos, incluindo seis delegados, suspeitos de envolvimento com a quadrilha de bingueiros, que recebiam dinheiro da contravenção. As transcrições dos grampos telefônicos mostram que os pagamentos eram chamados de "convites" ou "memorandos".
A maior parte dos policiais flagrados nas escutas da PF tem apenas os prenomes citados no relatório, que também faz referência às delegacias onde estão lotados. Para evitar injustiças, O GLOBO se limitará a identificar delegados e inspetores que tiveram os nomes completos registrados no documento.
A exemplo de 1994, quando o estouro da fortaleza do bicheiro Castor de Andrade, em Bangu, revelou o pagamento de propina a policiais de alta patente, a escuta da PF, agora, traz à tona a existência de um círculo de proteção aos bingos. Um dos trechos mais comprometedores é de uma conversa de um policial identificado como Alcides, que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal suspeitam se tratar do inspetor Alcides Campos Sodré Ferreira, na época assessor especial do então chefe de Polícia Civil, Ricardo Hallak, e que receberia a propina no prédio da instituição. Hallak é citado, mas não aparece falando nos grampos.
Dinheiro entregue na Chefia de Polícia
Numa das conversas gravadas, Alcides marca um encontro com Marco Antônio dos Santos Bretas, o Marcão, preso pela PF sob a acusação de ser o principal responsável pelo pagamento de propina aos policiais. A interceptação, feita em 14 de dezembro passado, mostra que a entrega do "pagamento mensal", segundo a PF, foi feita no 12º andar de um prédio no Centro. Nesse período, Alcides estava lotado no gabinete da chefia de Polícia Civil, que fica no 12º andar do edifício da corporação. No telefonema, Marcão pergunta se Alcides "está no 12º" e se pode subir. O então assessor especial da chefia diz que sim. No dia seguinte, eles voltam a se falar e Marcão se refere a entregar o "convite", ao que Alcides responde que é para ele avisar quando estiver chegando ao Centro. O policial não foi localizado para comentar as gravações.
As negociações interceptadas nas escutas feitas pela PF mostram que a relação de policiais com os acusados de exploração ilegal do jogo vão do conserto de aparelhos de ar-condicionado de uma delegacia à exigência de R$30 mil para não se lavrar um flagrante de prisão que prejudicaria o bando. O relatório destaca que um outro contato dos bingueiros com policiais, José Luiz Rebello, gerente operacional dos acusados Licínio Soares Bastos e Laurentino Freire no Bingo Icaraí, estaria negociando valores com policiais lotados na Delegacia de Defesa de Serviços Delegados (DDSD).
Bando pagou até conserto de aparelho
Em data não especificada pela PF, José Luiz, segundo o relatório, recebe um telefonema de um homem identificado como Lourenço, que, de forma dissimulada, lhe informa que estão sendo cobrados R$30 mil pelo delegado Waldeck. Este é identificado pela PF como Rodolfo Waldeck Penco Monteiro, titular da DDSD. O dinheiro estaria sendo exigido para não ser feito um auto de prisão em flagrante. Waldeck, que, apesar de ser mencionado no relatório da PF, não aparece como interlocutor nas conversas com integrantes da quadrilha, não foi localizado na delegacia ou no seu telefone particular para comentar o caso.
As investigações revelaram que mesmo a Operação Gladiador, da Polícia Federal - que em 15 de janeiro prendeu vários policiais acusados de ligação com quadrilhas de exploração de caça-níqueis no Rio - não impediu o pagamento da propina mensal. Um diálogo entre Marcão e um delegado chamado Rubem foi captado no mesmo dia em que os agentes federais tentavam cumprir 45 mandados de prisão e busca e apreensão no estado. Segundo os investigadores, o delegado é Luiz Carlos Rubens dos Santos, atualmente titular da 65ª DP (Magé). Marcão, de acordo com a PF, atribui o fato de o "troco" estar atrasado às "visitas" ao Rio de Janeiro. Luiz Carlos Rubens não foi encontrado para comentar o caso.
Outro delegado identificado por meio dos grampos é Reginaldo Guilherme da Silva, da 78ª DP (Fonseca), que trocaria informações com o mesmo José Luiz sobre os policiais que seriam confiáveis para atuar junto ao grupo. Em conversa gravada no dia 11 de janeiro deste ano, o gerente discute com o próprio delegado como atender a um pedido dele, a quem chama de Reizinho. Reginaldo reclama do calor excessivo nas delegacia provocado por um defeito nos aparelhos de ar-condicionado da unidade. José Luiz diz que já conseguiu um técnico para resolver o problema. "O cara me ligou, deixa ele fazer o orçamento amanhã, vou ver o tamanho do rombo aí. Tudo tá f(...) aí", diz José Luiz. Reizinho sugere então uma forma de José Luiz atendê-lo sem gastar muito. "Eu ia até falar contigo. Ao invés de consertar aqueles sprinter que é caro à beça, tem dois ar-condicionado que estão no auditório, que ninguém usa, que são de 22.000 BTUs, eu acho (...) Se fizer isso, já está de bom tamanho".
Reginaldo admitiu ao GLOBO ter pedido ajuda a José Luiz para mudar o ar-condicionado de uma sala da delegacia. O delegado alega que não sabia da ligação do interlocutor com os integrantes da máfia dos bingos. O policial argumenta ter conhecido José Luiz no período em que esteve à frente da 38ª DP (Brás de Pina). Segundo Reginaldo, José Luiz trabalhava como gerente de uma casa de shows no bairro e costumava ceder empregados para fazer pequenos reparos na delegacia.
Em relação ao trecho em que José Luiz pergunta se os policiais eram confiáveis para participar do esquema, Reginaldo garante que estava se referindo ao agente que deveria ser procurado por um empregado do gerente. O reparo no ar-condicionado teria sido feito num sábado. Reginaldo disse não ter sido procurado pela PF para explicar os telefonemas.
Assédio para entrar na lista de propinas
O relatório da PF afirma que há um grande assédio por parte dos policiais para entrar na lista de propina. Uma das ligações sobre o assunto aconteceu no dia 15 de janeiro deste ano, entre Marcão e Júlio, que seria Júlio César Guimarães Sobreira, secretário-geral da Associação de Bingos do Rio (Aberj), que repassava os recursos destinados à corrupção dos servidores públicos. Nela, Marcão afirma que está sendo assediado pelo delegado Freitas, dos "velhinhos". A PF investiga se os dois se referiam a José Januário Freitas, que estava lotado na Delegacia Especial de Atendimento à Pessoa de Terceira Idade (DEAPTI). Na ligação, Marcão afirma que está recebendo assédio daquele que foi lá no "tio" (referência a um dos bicheiros), "aquele que é baixinho, que está nos velhinhos". Segundo Marcão, o delegado disse que foi transferido, "que foi pego de calças curtas, tá pedindo para dar um toque para Júlio ou para o tio se poderia aparecer". Júlio manda avisar que o caso dele estará resolvido até sexta-feira, que "é saideira", porque ele não está mais "sentado". A PF chama a atenção para o fato de que, no dia 16 de janeiro, o próprio Freitas liga para Marcão e deixa um recado na caixa postal dele, cobrando a "saideira". O delegado Freitas, que entrou em 18 de outubro de 2004 na DEAPTI, foi transferido do cargo em 10 de janeiro deste ano. Atualmente lotado na 118º DP (Araruama), ele não foi localizado para comentar o grampo.