Título: Decreto de Morales faz 1 ano; miséria persiste
Autor: Melo, Liana
Fonte: O Globo, 06/05/2007, Economia, p. 38

Apesar de melhora macroeconômica, nacionalização não surtiu efeito no bolso de bolivianos, que protestam contra governo.

LA PAZ. O contencioso entre Brasil e Bolívia por causa do preço a ser pago pelas refinarias da Petrobras está colocando os presidentes dos dois países em campos opostos. O afastamento de Lula e Evo Morales ficou nítido durante as comemorações de 1º de Maio, em La Paz, quando Morales citou apenas os aliados ideológicos Hugo Chávez, da Venezuela, e Fidel Castro, de Cuba. Mas foi no Brasil que o líder cocaleiro se inspirou para reduzir os indicadores de pobreza de seu país. O Bono Juancito Pinto, versão do Bolsa Escola, virou um dos principais programas para amenizar os efeitos da miséria, que atinge 64% dos bolivianos. Já a nacionalização de petróleo e gás, um ano depois de decretada, ainda não surtiu efeito no bolso dos cidadãos, muitos dos quais acabam deixando o país. Atualmente, vivem fora da Bolívia cerca de três milhões de bolivianos, o equivalente a um terço da população.

O Bono Juancito Pinto conta com recursos anuais de US$30 milhões e prevê que as famílias com crianças de 6 a 10 anos matriculadas nas escolas públicas tenham direito a 200 bolivianos por ano. O salário mínimo, vigente desde o último dia 1º, é de 525 bolivianos. Considerado o país mais pobre da América do Sul, a Bolívia sempre foi conhecida por três dos seus mais graves entraves socioeconômicos: a produção de coca, matéria-prima da cocaína, a pobreza e a corrupção. Esses três ingredientes colocam o país numa posição desconfortável no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU: a 115ª.

Bolivianos contestam uso político da nacionalização

A corrupção vem sendo enfrentada, tanto que a Bolívia avançou no ranking da Transparência Internacional, ONG que mede o índice de percepção de corrupção em 163 países. Em 2006, o país ficou em 99º lugar, melhor que a 117ª posição de 2005. A pobreza, por sua vez, tem sido atacada mais com palavras - além de carismático, Morales domina a retórica - do que com programas.

- A nacionalização dos hidrocarbonetos, na prática, ainda não rendeu um único boliviano a mais no bolso do cidadão. Os recursos não estão chegando à base da pirâmide social, ainda que, do ponto de vista macroeconômico, a Bolívia esteja numa situação muito boa - diz o economista Gonzalo Chavez, chefe do Departamento de Economias em Desenvolvimento, da Universidade Católica da Bolívia, considerado um dos maiores especialistas no assunto.

Os indicadores confirmam a análise de Chavez. Em 2006, a Bolívia viveu uma espécie de choque externo, diz ele. Pela primeira vez em cinco anos, o país registrou superávit. As exportações, que não passavam a barreira de US$1,8 bilhão, pularam para US$4,2 bilhões. A inflação caiu, e as reservas internacionais triplicaram, o que levou a Bolívia a não renovar o empréstimo-ponte com o FMI. As contas estão melhorando, incrementadas, sobretudo, pelo dinheiro novo da nacionalização dos hidrocarbonetos.

Só com a revisão dos contratos de gás, a Bolívia recebeu mais US$1,6 bilhão no ano passado. A receita média oriunda do gás em forma de royalties e impostos girava em torno de US$600 milhões antes da estatização. O problema é que nem os indicadores econômicos nem o currículo de Morales - um homem do povo, que na juventude pastoreou lhamas e na vida adulta enfrentou os EUA - estão sendo suficientes para amenizar as tensões sociais internas.

Ainda que apoiado pela maioria da população, o programa de nacionalização está se virando contra seu criador. Parte dos bolivianos está insatisfeita com o uso político da medida e começa a cobrar a aplicação dos recursos de petróleo e gás. Greves pipocam pelo país, e movimentos sociais pedem a cabeça de ministros.

Segundo dados do próprio governo, os profissionais da área de educação lideraram as manifestações nos quatro primeiros meses do ano. O setor foi responsável por 16% dos conflitos sociais contra Morales, seguido por ações de camponeses (12%), profissionais da saúde (11%) e mineradores (10%).

- Na área de saúde, o déficit é de três mil novos postos de emprego - destaca José Gonzáles, presidente da Confederação Sindical dos Trabalhadores de Saúde.

Gonzáles calcula que, desde a posse de Morales, foram criados apenas 350 novos postos de trabalho. Na última semana, os profissionais da área invadiram o Ministério da Saúde e dos Esportes e exigiram a demissão da ministra Nila Eredia. Morales pediu calma e patriotismo, mas não acenou nem com aumento salarial - a categoria queria 20% e acabou baixando para 7% - nem com criação de empregos. Irredutível, o governo diz não poder dar mais que 6%.

Economista: governo não combate desemprego

Os professores também estão insatisfeitos. Pararam por 48 horas na semana passada e ameaçam com uma greve se o governo não negociar. Querem aumento e revisão da reforma educacional, além de empregos.

- O governo está conseguindo enfrentar as empresas estrangeiras que operam no país, mas não consegue lutar contra o desemprego - compara o economista Chavez.

Segundo seus cálculos, ingressam no mercado de trabalho 140 mil pessoas por ano. O governo não consegue atender nem a 40% dessa demanda. O combate ao desemprego foi uma das principais bandeiras da plataforma política de Morales.

Argentina e Brasil são destinos dos emigrantes

A falta de perspectiva para os jovens está fazendo crescer, em progressão geométrica, o fenômeno da migração. Hoje, vivem fora da Bolívia cerca de três milhões de bolivianos. A Europa, sobretudo a Espanha, é o principal destino da corrente migratória, segundo dados da Organização Internacional de Migrações e da Direção Nacional de Migração da Bolívia. Argentina e Brasil também são destinos concorridos. Ironicamente, a remessa de dinheiro dos imigrantes tem ajudado os indicadores do país. Em 2006, a Bolívia recebeu US$570 milhões, ante US$370 milhões em 2005.

Pesquisa feita pelo Instituto Apoyo, Opinión Y Mercado mostra que, num universo de 1.025 pessoas, de 18 a 70 anos, 53% estariam dispostos a abandonar o país por falta de perspectiva econômica. Segundo a Unidade de Análises de Políticas Sociais e Econômicas (Udape), a taxa de desemprego urbano no país é de 9,6%. Só que o indicador não dimensiona o tamanho da crise social, já que 60% da população econômica ativa, ou seja, 4,6 milhões de pessoas, sobrevivem da informalidade.