Título: Cruel assassinato
Autor: Sales, D, Eugenio
Fonte: O Globo, 05/05/2007, Opinião, p. 7

Lapidar é a manifestação do Concílio Ecumênico Vaticano II: ¿O aborto e o infanticídio são crimes abomináveis¿ (¿Gaudium et spes¿ nº 51).

O sentido da expressão ¿direito ao próprio corpo¿ é visceralmente ambíguo. Soa como justificação da prostituição que é, na crua e triste realidade, a pior escravatura da mulher.

Está na ordem do dia o assunto do aborto. De 14 a 16 de abril de 1991, realizou-se, sob os auspícios da Arquidiocese do Rio de Janeiro, o II Congresso Internacional sobre o pensamento do Papa João Paulo II. Após sua conclusão, escrevi o artigo ¿Onde começa o direito à vida¿, que foi divulgado pela imprensa, como ainda ocorre semanalmente. Achei oportuno retomar alguns tópicos do mesmo. É o que faço a seguir, em jornais, emissoras de rádio e televisão.

O Congresso examinou, sob vários aspectos, a Bioética: ¿Nova embriologia e seu exame filosófico-teológico¿. Inscreveram-se mais de 300 pessoas: sacerdotes, médicos, professores, estudantes universitários (...). Os participantes, vindos de São Paulo, Curitiba e Bahia, revelam o interesse pelo candente assunto em pauta.

Conferencistas de alto nível, convidados de outras nações ou oriundos de nosso meio abriram para o auditório novas perspectivas e sublinharam preocupantes aspectos em matéria tão delicada. O número e a qualidade das perguntas no plenário indicavam o elevado padrão intelectual da assistência.

À medida que as pesquisas progridem, torna-se claro que não se pode distinguir na vida nascitura entre um suposto ¿pré-embrião¿, pretenso aglomerado de células, e o embrião. A pessoa, desenvolvida e silenciosa, fetal, existe desde o momento da concepção. Por isso, o óvulo fecundado já não é parte do organismo da mãe, nem fica à mercê dos progenitores, mas é portador original e inconfundível de um ¿programa de vida¿ que contém, embrionariamente, a plenitude do ser a se desenvolver no seio materno para ser finalmente dado à luz. Ele já é possuidor da dignidade imortal de uma criatura à imagem de Deus.

Os expositores filosóficos e teológicos demonstraram essa dignidade intocável do embrião. Não existe meio-termo. As técnicas biomédicas agem segundo a ordem da natureza, ou atentam contra ela, destruindo, com as características de cruel assassinato, um ser absolutamente inocente.

Ponto alto do Congresso foi a exposição dos pontos essenciais do magistério do Papa João Paulo II, em continuidade com seus antecessores.

Os santos padres reconhecem as conquistas da ciência e da técnica. Observam, porém, que elas não possuem uma autonomia absoluta quando usam seres humanos, fetos e embriões, como meios, submetendo-os à arbitrariedade de pesquisadores ou dos pais.

Os papas chegam a denunciar uma mentalidade contrária à vida, a ¿anti life mentality¿.

O cientista pode sucumbir à tentação: além do progresso tecnológico, como um fim em si mesmo, onerar esse avanço extraordinário a objetivos incompatíveis com a preservação dos direitos humanos.

O centro do ensinamento papal é a pessoa, no sentido pleno e cristão. Os pais são os privilegiados instrumentos do Senhor para o surgimento deste novo ser, criado à imagem do Senhor. A inviolabilidade e o direito à vida desde a concepção até à morte são expressão da própria dignidade da pessoa, à qual Deus concedeu o dom maravilhoso da existência.

Contrasta escandalosamente com a visão cristã o holocausto, anual, de 40 a 60 milhões de crianças abortadas, vítimas do egoísmo e da violência!

Na História da Humanidade, a rejeição da verdade tem sido uma constante. Importa, contudo, afirmá-la continuamente, a despeito dos contraditores.

Estes temas não são apenas assuntos internos da vida da Igreja, mas se situam lá onde o Evangelho, com sua cristalina verdade divina, deve permear e iluminar a civilização. Respondem a interrogações angustiantes do homem moderno com suas dolorosas dúvidas; não devem ser submetidos por debate ou opiniões conflitantes.

Possam estas reflexões suscitar uma nova atenção e vigilância, um revigoramento na disposição de todos os que trabalham na formação das consciências e na defesa dos mais fracos. Um gesto de protesto contra a violação dos direitos humanos, sobretudo de seres inocentes.

D. EUGENIO SALES é cardeal-arcebispo emérito da Arquidiocese do Rio.

São de 40 a 60 milhões por ano as crianças abortadas, vítimas do egoísmo