Título: Políticos x cidadãos
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 09/05/2007, O País, p. 4

PARIS. O tema surgiu lateralmente durante a campanha presidencial, teve um momento de destaque no debate entre os dois candidatos antes do segundo turno, e agora aparece dominante nos preparativos do futuro governo Sarkozy: qual é a importância dos partidos políticos no atual jogo democrático francês e, de maneira mais ampla, na democracia representativa? A candidata do Partido Socialista, Ségolène Royal, defendeu a "democracia participativa", como está em moda na esquerda, com o uso de referendos e plebiscitos para reforçar a democracia representativa, que ela vê em crise, talvez refletindo a situação interna de seu próprio partido.

O afinal eleito Nicolas Sarkozy sempre se colocou contra a idéia de que a democracia representativa está em crise, e agora começa a dar demonstrações de que sabe usá-la muito bem para montar seu futuro governo. Para organizar uma "maioria alargada", o UMP, o partido oficial, está propondo um "pacto presidencial" que permita a Sarkozy aprovar as reformas que defendeu durante as eleições.

O primeiro a ser atingido, talvez mortalmente, por tal "alargamento" foi o líder dos centristas, François Bayrou, que saiu do primeiro turno como o fiel da balança da decisão e hoje não passa de um incômodo para seus próprios partidários, que aderem em massa ao governo Sarkozy.

Depois de ter recebido quase 19% dos votos no primeiro turno, e de ter conseguido um insólito debate com a candidata do PS mesmo não tendo ido para o segundo turno, Bayrou vê irem por água abaixo os planos de fazer de seu "movimento democrático" o principal contraditório do "pólo centrista" de Sarkozy.

Os apelos do novo poder estão afetando até mesmo a esquerda, que a qualquer momento pode ver um dos seus anunciando a adesão: Sarkozy já deixou vazar que só anunciará o Ministério definitivo depois das eleições legislativas de junho, e vários acordos regionais estão sendo feitos para que os políticos que aderirem ao tal "pólo centrista" não tenham concorrentes do UMP em suas regiões.

A clivagem entre direita e esquerda, que havia perdido sua importância no primeiro turno, quando muitos da esquerda votaram em Bayrou, voltou a aparecer com força no segundo turno, como não poderia deixar de ser, pela bipolarização do debate. Mas alguns dados mostram que ela se deu muito mais em termos de recusa do candidato direitista do que de adesão aos conceitos moderados da candidata socialista.

Há movimentos à direita e à esquerda para a ampliação do espectro político nas alianças partidárias, o que ficará claro nas próximas eleições legislativas. O sociólogo Alain Touraine considera que a diferença entre direita e esquerda "na essência histórica da democracia representativa" era a correspondência entre a divisão de classes e a divisão política, "a direita representando os conservadores e a esquerda, o mundo do trabalho". Não é mais assim, admite ele.

Uma análise da repartição dos votos no segundo turno entre Sarkozy e Ségolène, numa pesquisa publicada ontem pelo jornal "Le Figaro", mostra, por exemplo, que Sarkozy foi majoritário entre os trabalhadores de menor poder aquisitivo e de nível de educação mais baixo, ao mesmo tempo em que foi majoritário também entre os assalariados de maior poder aquisitivo, e perdeu para a socialista apenas entre os de ensino superior, e mesmo assim por uma diferença pequena.

Para Touraine, "a democracia representativa desapareceu porque, de uma parte, os grupos sociais mais representativos, os que reúnem as classes sociais, se fragmentaram, não se sabe mais o que representa o quê". Ele também vê os partidos políticos, tanto na Europa quanto no mundo, "misturando tudo". Em conseqüência, "a oposição a nível político da esquerda se esvaziou; a oposição do tipo sindical se esvaziou, e hoje o que há é o sistema hegemônico mundial".

O papel da globalização na vida política dos países foi um dos temas da recente reunião da Academia da Latinidade na Jordânia, da qual Touraine participou, e o sociólogo Candido Mendes, secretário-geral da academia, foi dos que chamaram a atenção para "o efeito da hegemonia no horizonte histórico", que estaria provocando uma impossibilidade da diferença, da alternativa.

Falando especificamente sobre a situação européia, às vésperas da eleição francesa, Candido Mendes criticava a aproximação do Partido Socialista francês do que classificou de "realpolitik da globalização" com a candidatura de Ségolène Royal, "abandonando as marchas naturais de seu âmbito" por uma atitude "ferozmente voluntarista".

Candido Mendes se referiu também à "hiperfragilidade" dos governos Merkel, na Alemanha, e Prodi, na Itália, demonstrada, segundo ele, "pelo imobilismo do centro-direita em Berlim e do centro-esquerda em Roma". Diante da ampliação excessiva do espectro político nas negociações, que se repete agora no pós-eleição na França, em busca de um consenso impossível, de novas maiorias políticas, perguntava Candido Mendes: "Onde parará essa transação, uma vez perdida a referência das polaridades? Onde terminarão as concessões?".

Dentro do que Alain Touraine chama de "confusão instalada", ele destaca os movimentos de base da democracia "que quase todos os dias colocam em discussão as dimensões culturais, de personalidade, do corpo, da natureza". Isso mostraria, segundo Touraine, que passamos de uma sociedade de partidos políticos para uma sociedade civil.

Para ele, "há um deslocamento do nível de polarização, mas há uma polarização muito forte entre a hegemonia global e o indivíduo, o sujeito, o local. Não há uma diminuição da polarização, mas uma troca de nível da vida pública".