Título: Improviso caro
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 09/05/2007, Economia, p. 30

O Brasil tem improvisado em assunto sério: a relação com os países vizinhos. No caso da Bolívia, o Brasil decidiu na base da tentativa e erro e só agora está começando a achar o tom certo, depois de um ano de equívocos. Isso terá seqüelas, e uma delas poderá ser vista no ano que vem no Paraguai. O Brasil cresceu, as empresas brasileiras se globalizaram, e a primeira escala é sempre num país vizinho.

Quando o governo brasileiro comemorava estrepitosamente a vitória de Evo Morales, escrevi aqui que era melhor não fazer muita festa porque o Brasil tinha virado o gringo da vez. Quando Evo vociferava contra o capital estrangeiro, era o Brasil que ele tinha em mente. Era fácil perceber isso. Os Estados Unidos têm reduzido sua presença relativa na região. Ostensivamente, o país símbolo do imperialismo está apenas na Colômbia, mas com autorização do país. A globalização aumentou e diversificou as fontes do fluxo de capitais externos para a América Latina. Hoje é o Brasil que cresce na região e multiplica suas áreas de interesse com, obviamente, outro tipo de atitude em relação aos países.

Uma das duas cabeças da diplomacia da era Lula, a de Marco Aurélio Garcia, achava que o que estava se passando na região era a chegada ao governo dos "companheiros" de esquerda. A Petrobras, por sua vez, não fez a devida análise de risco político e errou redondamente ao subestimar o que estava por vir. Achou que intimidaria Evo Morales pelo tamanho da empresa na Bolívia. Não percebeu que enfrentar um gigante econômico pode ser muito rentável politicamente. E foi essa a estratégia usada pelo governo para lutar contra suas fragilidades políticas e construir maioria na Assembléia Constituinte.

Talvez um dos erros mais graves cometidos em todo este festival de sandices que foi a reação à crise boliviana tenha sido o presidente Lula aceitar uma reunião com Evo Morales e Hugo Chávez logo após a ocupação da refinaria com fanfarra militar. Lá, Lula ouviu em silêncio um absurdo discurso de Chávez em tom paternal sobre Morales, chamando de "ação soberana" o que tinha acabado de fazer. A situação ficou mais esdrúxula quando Morales agradeceu a solidariedade dos vizinhos como se tivesse sido atingido por uma catástrofe, quando, na verdade, havia ocupado militarmente a sede de uma empresa brasileira, acusando-a de fazer chantagem.

- Para mim, é uma alegria estar aqui com as nações mais desenvolvidas da América do Sul e receber a solidariedade de Brasil, Argentina e Venezuela pelos problemas que atingem o meu país nas últimas horas - disse Morales na ocasião.

A Petrobras está em muitos países da América Latina, com investimentos diversificados. Inúmeras empresas brasileiras também. Há pouco mesmo, quando Hugo Chávez fez mais uma de suas bravatas, típica do governante espetáculo que é, atacando uma siderúrgica argentina, acertou em outra empresa brasileira: 16% do capital da controladora da Sidor é a brasileira Usiminas. O modelo é sempre o mesmo, ataca-se a empresa levantando suspeitas difusas de práticas condenáveis e contra os interesses do país no qual a empresa atua. Assim faz Chávez, assim fez Morales sobre a Petrobras.

Em relação ao último evento da briga, a verdade está com fontes da própria Petrobras, que, nos últimos anos, acompanharam in loco os investimentos da empresa brasileira nas duas refinarias. Quando o Brasil as comprou, elas estavam em estado avançado de deterioração. Uma dessas fontes descreve o prédio administrativo como "todo depredado, com ratos e infiltrações"; as tubulações pelas quais passavam os derivados "corriam sobre a terra diretamente, com muitos vazamentos poluindo o solo". Isso entre outros detalhes. Hoje a refinaria de Cochabamba, por exemplo, está há quatro anos sem acidentes e tem ISO 14.000.

Portanto é inaceitável o preço estabelecido pela Bolívia, e a Petrobras tem que resistir a qualquer pressão do governo, em defesa dos interesses de seus acionistas. Ao contrário do que, às vezes, parecer crer o governo Lula, a Petrobras não é só uma estatal. É uma empresa de capital aberto com acionistas dentro e fora do país. O prejuízo dela afeta os dividendos desses investidores.

Há um prejuízo, no entanto, mais perigoso na atitude leniente do governo: o incentivo a que outros países usem a mesma forma de atuação. Ontem, aqui neste jornal, o diplomata Rubens Barbosa escreveu sobre o aumento da animosidade no Paraguai em relação ao Brasil e aos brasileiros. No ano que vem, haverá eleições, e o Brasil já foi escolhido para ser o alvo de todos os candidatos que querem parecer fervorosos nacionalistas. Recentemente, num mesa-redonda do Cebri, o embaixador José Botafogo Gonçalves disse que o Brasil tem vivido na região uma "diplomacia do desgaste".

Houve um tempo em que se repetia entre os diplomatas o lema "o Itamaraty não improvisa". Tempo bom. O problema é que os improvisos podem produzir mais prejuízos que se imagina. Nesta era de arroubos primitivos por parte de alguns governantes da região, o Brasil precisa redobrar os cuidados e ter uma estratégia. Uma velha e boa regra é a que foi defendida pelo embaixador Rubens Ricupero: nunca aceitar negociar sob uma posição de força, nunca pautar a política por razões ideológicas, nunca mostrar falta de firmeza.