Título: Política personalizada
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 10/05/2007, O País, p. 4

PARIS. O presidente eleito da França, Nicolas Sarkozy, arrisca perder em poucos dias a imagem de coerência que montou sem quase nenhum erro nos últimos cinco anos, e mais notadamente, durante a campanha eleitoral. O "candidato dos pobres" e do "país que trabalha" foi descansar da vitória na Ilha de Malta a bordo de jatos e iates emprestados por amigos milionários, e teve que retornar antes da hora para retomar a montagem de seu futuro governo a partir da imagem de presidente da unidade nacional, que deixou marcada no discurso da vitória, e não na do freqüentador do jet-set internacional, que parece não lhe desagradar, mas provoca em parte do eleitorado pelo menos polêmica - quando não a "cólera sadia" de que falou a candidata derrotada Ségolène Royal.

Enquanto estava de férias, nada menos que mil carros foram incendiados nas periferias das principais cidades da França, não apenas pela "corja" de imigrantes, mas principalmente por jovens estudantes extremistas. Essa imagem do milionário exibicionista e deslumbrado, se não atrapalhou sua carreira política, pode tirar a legitimidade do presidente que terá pela frente a árdua tarefa de aprovar reformas delicadas nas legislações trabalhista e previdenciária, para que o país volte a ser competitivo no mercado globalizado.

Sarkozy nunca se sentiu culpado pelo estilo de vida que leva, e uma de suas frases mais esclarecedoras sobre o assunto estava ontem em todos os jornais: "Se um político é eficiente, não vejo por que ele deverá viver mais modestamente", referindo-se ao seu padrão de vida, equiparável ao de um executivo de grande empresa.

Para justificar cruzeiros pela Costa Amalfitana e hospedagens em vilas milionárias na França, sempre na companhia de amigos ricos, Sarkozy junta a seus salários da carreira política (ministro, prefeito) os lucros de seu escritório de advocacia, e direitos autorais.

Eficiência é a palavra-chave para ele, e é o que define hoje, para o sociólogo Hélio Jaguaribe, a diferenciação entre esquerda e direita: "Hoje a direita acredita na eficácia administrativa com um mínimo de equilíbrio social. E a esquerda acredita no máximo de equilíbrio social sem afetar a eficiência administrativa mínima".

Essa seria a explicação para a face "paz e amor" de Sarkozy, que jurou não abandonar os despossuídos - que, pelo jeito, acreditarem nele -, e pela defesa exaltada de Ségolène Royal do empreendedorismo e da pesquisa tecnológica como maneiras de promover o crescimento econômico do país.

A importância do carisma pessoal dos dois candidatos finalistas da eleição presidencial francesa - Sarkozy exemplificando o executivo cheio de energia e decisão, Ségolène, a renovação e a ampliação da visão dos socialistas, ambos na casa dos 50 anos, encarnando igualmente uma nova geração política - foi sempre mais destacada na campanha do que a importância dos respectivos partidos políticos, até porque os dois encarnavam dissidências em seus grupos políticos.

O cientista político do Iuperj Paulo Roberto Figueira Leal, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, tem pesquisado sobre o que chama de "nova ambiência eleitoral" e está coordenando um projeto de pesquisa na UFJF sobre os discursos dos candidatos a presidente nas eleições de 2006. Segundo ele, um padrão se repete em variadas democracias do mundo: uma predominância das supostas qualidades dos candidatos em detrimento do discurso partidário, num fenômeno já conhecido como "americanização" das campanhas eleitorais, com destaque para o papel dos meios de comunicação.

"Mesmo em países com longa tradição de consolidação do sistema partidário (por exemplo, o Reino Unido), caem sistematicamente os indicadores de identificação partidária e aumentam os índices de volatilidade eleitoral - ou seja, há um cenário de grandes dificuldades para os partidos políticos", alerta Paulo Roberto.

Usando o exemplo do Brasil, o cientista político chama a atenção para o fato de que "todas as eleições presidenciais disputadas democraticamente desde 1989 parecem corroborar a hipótese - Fernando Collor se elegeu por uma agremiação inexpressiva, Fernando Henrique deveu seus sucessos muito mais a fatores econômicos conjunturais (o Plano Real em 1994; o risco da perda da estabilidade econômica em 1998) e mesmo Lula, em suas duas vitórias, mostrou ser eleitoralmente muito mais significativo do que o PT".

A importância crescente do voto personalizado, o declínio da identificação partidária e o processo de desalinhamento do eleitorado "sinalizam para a prevalência dos fatores de curto prazo como determinantes do voto", diz Paulo Roberto, citando Martin Wattenberg, o cientista político americano autor de um livro recente sobre o declínio dos partidos políticos dos Estados Unidos, que designa o fenômeno como a "ascensão da política centrada nos candidatos".

Competência, integridade, capacidade de decisão, carisma e atributos pessoais (aparência, idade, religião, saúde) preencheriam, nessa concepção, o espaço deixado pela discussão política, sobretudo em disputas pouco ideologizadas, como as norte-americanas.

Segundo Paulo Roberto Figueira, "diante de eleitores medianos desmobilizados para o verdadeiro debate político e ideológico, a ênfase em qualidades pessoais dos candidatos pode ser vista como um atalho, que facilita a aproximação e a adesão". Para ele, a "nova ambiência eleitoral" acontece em um cenário no qual os agentes políticos - desde os próprios candidatos até os responsáveis pela definição de estratégias de comunicação política - "orientam-se pelo pressuposto de que não devem ter como tema central de uma campanha questões ideológicas complexas."